Um
verso sintetiza a poesia de Tatiana Pequeno: “falo muito pouco naquilo que
digo”. O verso surge em “Poética a pesar”, um dos mais fortes poemas de
"Aceno" (Oficina Raquel). Detenho-me nessa frase, que parece
desmentir a si mesma. E que se duplica, logo abaixo, em outros dois versos:
“nomes são os primeiros recados/ legíveis que esquecemos”. Ambos apontam para
os limites da poesia, para sua insuficiência, até mesmo para sua incompetência.
Escreve-se “apesar de”. Aqui me lembro de Borges, que afirmava se julgar
inferior a muitos escritores, mas se consolava com a ideia de que cada um
escreve o que pode e não o que quer.
Tatiana não esconde seu espanto diante dessa
limitação. Não disfarça, porém, a melancolia, que ela, sábia, transforma em escrita. A poesia é
inoperante para resgatar o real. Consola-se, porém, com a ideia de que “tudo o
que não podemos tocar/ enaltece em nós a casa que está perdida”. A poesia é
incompetente para dar conta do mundo _ e por isso, talvez, Borges dissesse que
seu mais intenso sonho não realizado era ter sido, em vez de poeta, um “homem de
ação”. Mas não se pode negar que há uma ação contundente no ato poético. Não se
pode negar que, diante do objeto perdido, Tatiana ergue uma muralha que, se não
o recupera, a constitui enquanto poeta.
A poesia de Tatiana, por vezes, faz lembrar uma
parede: é dura e impenetrável. Poesia narrativa, que se apóia no empenho de
contar histórias que já não pode contar. “Estamos sempre à força de um
segredo”, ela admite. Por isso, enquanto lemos seus versos, somos levados a
pensar naquilo que fica de fora do poema _ imitando o pescador que, ao puxar
sua rede do mar, se põe a pensar não nos peixes que ganhou, mas nos peixes que
perdeu.
Tatiana escreve com a postura de uma sobrevivente,
que lutou a guerra das palavras, perdeu-a, mas, ainda assim, tirou algo dessa
luta. Eis a prova: seu livro. Seu belo livro. Assombra-se com o que fez, como
“quando não há jogo/ e o que sobra não é nem a verdade só o que/ você arrancou
dela”. O poema se ergue como uma parede entre o que ela desejou fazer e o que
de fato fez (Borges). Seu destino é recomeçar, e nisso um sentimento se
entranha: o medo. “Eu sei que comecei tudo com muito Medo”. Esse temor _ de
tentar e perder e ainda assim continuar a tentar _ faz parte, porém, do destino
do poeta.
Escreve Tatiana mais à frente, em versos fortes:
“eu reconhecia a tramitação/ de uma Tristeza certa que não dizia/ respeito
apenas ao teu continente/ mas sobretudo ao que houvera sido/ perdido ou nunca
possível”. É com o “nunca possível” que Tatiana Pequeno combate. É através dele
que desembarca no mundo. Sendo aquele que desafia a perda, o poeta é, ainda
assim, um melancólico. O que é a melancolia senão a “intrusão aterradora” (cito
Jacques Hassoun) do desconhecido? O que é a poesia, quando ela é, de fato,
poesia e não apenas versos, senão espanto?
Invasão _ mas também ausência. Susto _ mas também
paralisia. A matéria do poeta, Tatiana nos mostra, não é propriamente a
palavra, mas o “muito pouco”. Está escrito: “agora olho muito pouco/ para que/
essa atitude ampare/ o que sobrou impuro/ do próprio resgate”. Outra pista
surge aqui: a da impureza. E ainda: a do pensamento sempre “por um fio”.
Ocorrem-me _ colhidos em "Do desejo", livro de 2001 _ os versos
tontos de Hilda Hilst: “Uma mulher suspensa entre as linhas e os dentes/
Antiquíssima ave, marionete de penas/ As asas que pensou lhe foram arrancadas”.
Nem mesmo o fio _ mas o que foi arrancado. O vazio deixado por esse fio, que
talvez tenha a forma de fio também.
A poesia como parede. Como obstáculo para a própria
poesia. “Se falo contido do mundo é porque/ também não o sei diferente desta
dificuldade”. É no impedimento _ no não estar ali, exatamente no “não” _ que a
poesia se instala. Daí que o poeta se sente, quase sempre, entregue à solidão e
ao abandono. Mais ainda: sua posição no mundo o condena a se fragilizar. Mas
por que o medo? Porque poeta é aquele que está diante do que não se inscreve.
Escreve (ainda assim) Tatiana: “estar diante da letra que não/ se inscreve é
considerar a tua morte”. Escrever o que não se escreve é atravessar o vazio.
Única companhia: o medo.
Curioso que, apesar dos obstáculos e impedimentos,
os poemas de Tatiana Pequeno fazem um comovente esforço narrativo. Tenta,
sempre, contar uma história. Ela cita os versos de Helga Moreira em "Os
dias todos assim": “Certeza de que apenas em simulacro/ escrevo”. O
simulacro é um arremedo, mas é também uma tentativa. Tem, em geral, aparência
enganosa, mas isso ao poeta não importa. A poesia (que lida com vestígios) é
sempre engano. Borges: você tenta uma coisa, e escreve outra. Hilda Hilst: “Do
verbo eu apenas entrevi o contorno breve”. Vê com dificuldades, desdobra-se
diante do intocável. Volto a Tatiana: “tudo o que não pudemos tocar/ enaltece
em nós a casa que está perdida”.
Há grande beleza, porém, nesse “contorno breve”
(Hilda) que substitui o perdido. É a única maneira de que dispomos para
promover sua presença. Isso faz crescer o desejo de voltar para casa, de
retornar ao que perdemos, mas tudo o que resta é o desejo (Hilda de novo).
Imagens persecutórias da casa perdida nos acossam, mas também nos levam a
escrever. Há uma força bela no esforço que Tatiana faz para atravessar sua
parede. Quanto mais se empenha, mais a parede a arranha e fere. Mais densa ela
se torna. É assim que se alimenta a escrita: pelo choque.
Existem coisas que um poeta não pode fazer. Escreve
Tatiana: “não há como prender/ um grito e não há como pedir a uma/ sombra que
ela se arrisque ao sol”. Existem muitas coisas que não podemos fazer. Que
ninguém pode fazer. Coisas que não temos o direito de pedir. Mas sempre é
possível escrever _ e as palavras esboçam uma saída. As palavras são a saída? A
escrita é uma forma de teimosia. É com ela que um poeta enfrenta o desolamento.
A palavra é uma região em que o poeta se arrisca e por isso, tantas vezes, a
melancolia se instala. Há um inevitável desencanto _ estamos todos, sempre,
“por um fio” _, mas é dele que um poeta arranca seu canto.
(Texto
publicado no suplemento "Prosa" de O GLOBO, no sábado 17-01-2015)
JOSÉ CASTELLO
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