A meritocracia está por toda parte. Ou, pelo menos, o que parece ser um desejo dela. A palavra pipoca nas conversas, nas discussões políticas, na imprensa. Em geral, aparece como ausência: é algo que faz falta, que não existe. “E a meritocracia, como fica?” É a pergunta que se ouve, em tom de crítica e cobrança.
Alguma coisa parecia soar falso nessa quase unanimidade. Até que um pedaço de conversa entreouvido na rua fez a ficha cair. Vivemos um paradoxo: a assim chamada meritocracia deveria encarnar o reconhecimento do mérito como um princípio para guiar a vida pública.
No entanto, em boa parte das vezes em que é invocada entre nós, a palavra serve para que alguém tente justificar exatamente o reverso desse conceito: a perpetuação de privilégios. Os muitos privilégios — de nascimento, classe social, cor da pele e tantos outros —, de tal forma entranhados na vida brasileira que parecem “normais”, imutáveis.
Um artigo do economista Eduardo Giannetti — atual assessor da candidata Marina Silva — publicado há alguns dias na Folha de S. Paulo ajuda a explicar o paradoxo. Ele distinguia entre dois tipos de desigualdade: aquela que reflete talentos, valores e esforços diferenciados dos indivíduos, e aquela que resulta de um “jogo viciado na origem — de uma profunda falta de equidade nas condições iniciais de vida, da privação de direitos elementares e/ou da discriminação racial, sexual ou religiosa”.
A distinção, em si, vale um debate. Mas basta registar aqui que o paradoxo da “meritocracia” usada para justificar os privilégios resulta exatamente da falta de reconhecimento desse “jogo viciado na origem” apontado por Giannetti, ao qual ele atribui a responsabilidade pela péssima distribuição de renda brasileira.
Se nossas crianças e jovens começam a vida com brutais disparidades de condições e oportunidades, como falar em avaliação do mérito na hora em que vão disputar um lugar na universidade ou um cargo no serviço público? No entanto, é exatamente isso que cobram, muitas vezes, aqueles que reclamam mais “meritocracia”: que esqueçamos essa disparidade de condições iniciais — o jogo viciado na origem — para considerar simplesmente o resultado pontual de um exame. Como se todos os concorrentes chegassem a esse momento em igualdade de condições.
Não deveria ser difícil entender que, sem um nivelamento mínimo das oportunidades iniciais, não há como avaliar e reconhecer méritos individuais. E a palavra “meritocracia”, nessas condições, se torna oca — uma caricatura do significado que supostamente deveria carregar.
Armando Mendes é jornalista
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