Todo
escritor, mesmo contra a própria vontade, dissemina em seus textos pistas
involuntárias, rastos indeléveis de um desejo. De uma estratégia poética. De
uma estética íntima _ aquele impulso anterior que o leva a escrever. Desse
modo, livros transformam seus leitores _ qualquer leitor _ em detetives. Eles
perseguem pegadas, nódoas, restos que os ajudem a se aproximar do texto que têm
diante de si. Ler é procurar a origem. A cada linha, agarrar-se a um vestígio.
É procurar rotas de acesso. É assim, buscando caminhos e pisando a incerteza,
que avanço em "Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo", segundo
livro de poemas de Paulo Scott (Companhia das Letras).
Há algo de opaco na poesia de Scott _ uma “lã de
vidro”, para usar uma expressão que ele mesmo nos oferece. Algo que nos
aproxima, mas ao mesmo tempo nos afasta de seus versos. É justamente porque o
acesso direto é impossível, ou (se possível) torna-se enganoso, que o poema nos
atrai. Como não podemos acessá-lo diretamente, nós, seus leitores, passamos a
rondar o texto como atentos investigadores. Não conseguimos entrar _ embora
muitas vezes a leitura tenha uma aparência simples e até hospitaleira. E só
porque não conseguimos, continuamos a ler.
Tive um aluno que carregava consigo, sempre, um
exemplar de bolso do Quixote. Julguei, por muito tempo, que ele não parasse de
ler o livro. Um dia, cheio de inveja _ porque quase nunca me sobra tempo para
ler os clássicos _, eu lhe perguntei: “O que o fascina tanto em Cervantes?”
Olhou-me meio cético, meio desesperançado. Em seguida, como se confessasse um
pecado vergonhoso, me respondeu: “Na verdade, eu nunca o li”. Tinha o Quixote
na conta de um talismã. E, também, como uma promessa do dia em que, enfim,
chegaria a lê-lo. “Um dia eu consigo. Por enquanto, basta tê-lo perto de mim”,
ainda me disse. Esse aluno me ensinou algo essencial a respeito da imaginação:
ela precede os livros que lemos. Ela é nosso refúgio. Um dia, com o livro
aberto, sobre ele enfim a fantasia se derrama, alimentando-o e dele usufruindo.
Mas ela já existia antes. Meu aluno achava que a leitura do Quixote o salvaria.
Mesmo sem a leitura e sem a salvação, porém, o livro de Cervantes o consolava.
Pensei nesse aluno durante todo o tempo em que li
os poemas de Paulo Scott. Quando você abre um livro, a pergunta verdadeira não
é: “O que esse livro tem a me dizer?” A pergunta verdadeira é: “O que
encontrarei nesse livro que já me pertence?” Encontrei muitas coisas nos poemas
de Paulo Scott, coisas que duplicam e ampliam minha própria imaginação. A
idéia, por exemplo, de que o estranho já não basta: “ser apenas estranho/ com
idéias estranhas/ já não é suficiente”. A poesia pede mais _ busca a abertura
de uma fenda através da qual o leitor não apenas se jogue, mas se encontre.
A
simples ideia do estranho _ de tornar-se único e surpreendente _ pode
transformar o escritor em um “monstro inabalável”. Numa festa, o poeta encontra
uma menina que lhe “diz que você está se tornando/ tão patético quanto as
personagens/ que inventou”. Encontro aí uma mensagem: um escritor deve
desconfiar de si mesmo. Não aceitar-se facilmente e, ao mesmo tempo, se
suportar: “jogue fora os atalhos/ tente não culpar mais ninguém”. Em outras
palavras: sustentar a própria voz. Por mais que trate de outros temas, um poeta
está, todo o tempo, falando de sua própria escrita. Essa é a parede
intransponível: aquela que separa o aparente _ o transitório _ do que sempre
esteve ali e a poesia, enfim, revela.
Um escritor precisa ter coragem não só para
reconhecer os próprios limites, mas para enfrentar suas falsificações.
“Enquanto você fala de filhos e minto que virei escritor”, escreve Scott, com
absoluta lucidez a respeito da precariedade da invenção. Fazer literatura é
seguir o próprio caminho. “Voltar à vida, mesmo que doa”, ele diz em outro
poema. São pistas, são indícios que, como um aflito detetive, eu recolho aqui e
ali, lutando para recompor as trilhas por onde o poeta passou. A escrita não é
sempre a pegada _ muitas vezes ela se esconde entre as pegadas, isto é, nas
entrelinhas. Para chegar até elas, é preciso, primeiro, libertar-se do
circunstancial. Escreve Scott: “espera-se do poeta que lave as mãos/ antes e
depois de utilizar o mictório/ e não se distraia com o mau estado temporário/
dos azulejos”. Não só expelir (micção), mas também saber livrar-se daquilo que
o afeta e distrai. “Espera-se do poeta que seja pedra/ e, sendo pedra, aguarde
à mesa até que outros; cansem desse jogo de equipes que é a solidão”. Ser
pedra: lacrar-se em si mesmo. Carregar aquilo que é e disso fazer sua palavra.
Espera-se que o poeta “não tenha necessidade de ser bonito”. Que suporte a
própria face e isso lhe baste.
O poeta _ Scott nos adverte _ não trabalha com o
perfeito, mas com o imperfeito. “As vezes desço até a floricultura da cobal do
Humaitá/ atrás de crisântemos bordos em vasos plásticos/ escolho os que
estiverem menos consistentes”. Gosta de acompanhar o desfazer das flores até
que elas sequem, “assumindo a leveza dos chás”. Nessa decomposição _ da
aparência, da afetação, da soberba _ se abre um roteiro que leva o poeta de
volta a si. “Se o destino é respirar/ pode-se dizer então/ que o estado
inicial/ é de afogamento”. É a partir do caos (do desfazer-se) que um poeta
encontra sua forma. Encontra sua palavra. Só assim pode suportar, enfim, o
estado de estranheza. “Me olha, pai, não sou veneno”, ele pede.
Em outro poema, Scott fala de uma menina que passa
longo tempo na janela exibindo uma cartolina na qual expressa um desejo:
“personagem para o teu romance”. “Às vezes, ela usa um apito”, de tal forma a agita
o desejo de se transformar em objeto de imaginação. Em imagem. Desesperançado ,
o poeta escreve: “é sua maneira de registrar/ (se ao menos já houvesse livro)/
que nosso dia se perdeu”. Perdeu, ou ganhou? No espaço que antecede a escrita _
ali onde a fantasia ferve _ se guardam os grandes alimentos. Ali um poeta se
encorpa. Ali, antes mesmo da primeira palavra, ele se faz poeta.
(Texto
publicado no suplemento "Prosa" de O GLOBO no sábado 06/09/14)
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