terça-feira, 16 de setembro de 2014

A Formação Multiétnica do Brasil

O período eleitoral pode ser sempre um ensejo para uma reflexão sobre a nosso identidade nacional e sobre como queremos projetá-la no futuro.
 
Nossa história nos mostra que o Brasil é um país imperfeito e contraditório. Somos reconhecidos como uma democracia multiétnica, mas fomos uma das últimas nações a abolir a escravidão de afro-descendentes.
 
Sempre fomos grandes exportadores dos produtos de base campeões do mercado internacional - açúcar no Século XVII, ouro no Século XVIII, café no Século XIX, mas não conseguimos enriquecer com isso e durante a maior parte da nossa história temos sido um país subdesenvolvido. Nosso Estado arrecada bem os nossos impostos, mas se deixa defraudar com facilidade. É em meio a essas ambiguidades e contradições que devemos buscar os traços do nosso destino.
 
Um aspecto da nossa nacionalidade que se formou desde o início da nossa história é o perfil multiétnico. A leitura da carta de Pero Vaz de Caminha mostra o caráter pacífico e amistoso dos primeiros contatos entre portugueses e índios (o que contrasta vivamente com as chegadas de Pizarro e Cortés. Não quero aqui idealizar a nossa convivência interétnica, pois todos sabemos que para cada aspecto positivo, nesse domínio, existem múltiplos aspectos negativos que perduram até os dias de hoje. A nossa "democracia racial" é muito imperfeita.
 
Mas devemos reconhecer que quem sustentou o movimento das entradas e bandeiras foram os índios e os mestiços. E nas fazendas de São Paulo, até o Século XIX, falava-se a "língua geral", uma síntese das línguas da família tupi, cuja construção começara já no Século XVI com São José de Anchieta, canário, basco, lusófono e primeiro a deduzir a gramática das línguas indígenas.
 
O índios do Brasil eram cerca de quatro milhões no primeiro século posterior ao descobrimento de Cabral. Se hoje eles não chegam a um milhão, isso não se deve a um extermínio e sim, muito mais, à incorporação das suas etnias ao conjunto da nossa população. Meu saudoso e ilustre professor Manuel Maurício de Albuquerque lembrava a seus alunos que não há brasileiro de quatrocentos anos que não tenha sangue índio em suas veias.
 
E Darcy Ribeiro dizia, em uma frase inesquecível, que o Brasil é o resultado de uma mescla entre brancos que não são europeus, negros que não são africanos e índios que não são mais índios, transculturados que foram - que fomos - ao longo do nosso convívio.
 
Gilberto Freyre descreve melhor do que ninguém as relações que se forjaram entre a casa grande e a senzala, tão cheias de contrastes e ambivalências e que até hoje buscamos aprimorar com projetos de inclusão social. A escravidão é um crime contra a humanidade e não há como desculpá-la ou tolerá-la. Entre seus pecados está o de ter colocado em injusta desigualdade a nossa população negra, de maneira tão radical que até hoje persiste um forte desnível em desfavor dela, apesar dos esforços de instituições públicas e privadas em remediá-lo.
 
O reverso da medalha está em quanto aprendemos nós, brasileiros, com as contribuições dos índios e dos negros e também dos imigrantes mais recentes, que tornaram nossa cultura diversificada, singular e admirada em todo o mundo. E tolerante também, se não por virtude, pela própria distribuição do ADN entre nós. No Brasil, é muito difícil ouvirmos gritos racistas como se ouvem tão frequentemente nos estádios de futebol da Europa. E quando eles com causam viva reação.
 
É verdade que nossa miscigenação é mais produto da necessidade do que da virtude. Os índios nos ensinaram a adaptar-nos à floresta tropical e os negros nos ensinaram a trabalhar, pois, sabidamente, os nossos colonizadores em geral não estavam aqui para isso. Índios e negros foram e são elementos essenciais à formação da sociedade e da cultura brasileiras e em especial da classe trabalhadora do nosso país.
 
Em resumo, pode-se dizer que foram eles os tolerantes, que foram eles os fortes, que resistiram a séculos de opressão e de ausência de direitos e hoje convivem em nossa sociedade multiétnica, propiciando a todos nós usufruir de um país sincrético e democrático, visto como modelo de harmonia racial.
 
O Itamaraty soube trabalhar esse aspecto, que hoje nos permite desenvolver uma imagem internacional e uma política externa que proclamam com vigor os valores da solução pacífica das controvérsias, do respeito à diversidade, da busca da igualdade, da proteção aos direitos humanos com suficiente credibilidade para que sejamos vistos como um dos países mais construtivos da comunidade internacional.
 
 José Viegas Filho, embaixador aposentado, foi ministro da Defesa

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