Dizem que o maior
tributo intelectual já prestado a Shakespeare foram os numerosos ensaios e
livros do crítico Harold Bloom. O Bardo completa 450 anos
este ano, e uma boa homenagem a ele talvez fosse ler os livros de Bloom. O
“pobrema” é que eu me veria afligido por um surto de escrúpulos ao quadrado, e
me diria: “Nesse caso, que tal ler as dezenas de peças que você ainda não
leu?”.
Porque eu
conheço mais ou menos duas peças do bardo (Hamlet, Macbeth), li algumas outras e
desconheço a enorme maioria. Que direito tenho de
dizer que conheço o autor? Pelo menos a ponto de distingui-lo de
outros?
(Esta – incidentalmente –
seria uma experiência limite, um teste: quem de nós identificaria qualquer
parágrafo, colhido aleatoriamente, de um dos seus autores favoritos? Ninguém!
Ou melhor: diferente de zero, mas estatisticamente pouquíssimos.)
A pouca biografia que há de Shakespeare parece até uma coisa boa, porque quando penso nele não penso numa pessoa, penso num estilo. Nada sei sobre ele a não ser os poucos fatos que a imprensa compartilha. A pessoa dele é para mim tão desfocada e transparente quanto a de Chaucer, Francis Bacon, Marlowe, meros nomes e (no caso dele) um estilo. Diferente de outros que, por proximidade cultural talvez, sempre senti como pessoas e livro juntos, nenhum primeiro, nenhum depois: Cervantes e Camões.
Shakespeare é transparente, holográfico, uma mente que parece não ter deixado corpo atrás de si, ter trabalhado apenas a beleza e a clareza da linguagem. Ele pegava seus enredos de qualquer lugar: crônicas históricas, sagas, relatos de família, poemas orais guardados na memória. Em cima disso, o cidadão projetava um Raios-Gama verbal de extrema amplitude e implacável nitidez, algo que mesmo meio milênio depois raramente se consegue de vez em quando, quanto mais como ele, a cada folha.
Sua magia é a mesma de
Camões: como se concebe que quinhentos anos depois ainda escrevam quase como
ele? A resposta é que ele procurou em si mesmo a linguagem mais maleável, mais
flexível, mais carregada de variantes, com uma riqueza retórica capaz de
produzir, quase que fala-a-fala (do ponto de vista dos atores) frases de belo
teor e que desafiam o ator (e a direção) a escolher entre uma no meio de mil
possibilidades de interpretação.
Dá a impressão de que poetas como Camões, Dante e Shakespeare, mesmo tendo um conhecimento respeitável das línguas do passado, estavam, de algum modo e não se sabe por que motivos, tentando escrever na língua do futuro, na língua que conseguia se enriquecer e se simplificar sem contradição interna. E ajudaram a criá-la. Que escritor, publicado hoje, será lido e (pretensamente) compreendido em 2600?
Braulio Tavares
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