Ontem,
ao ver na TV as medonhas imagens de mais um capítulo da novela "A
Selvageria Brasileira" (refiro-me ao que ocorreu num hospital de Campina
Grande-PB), meu estado depressivo intensificou-se. A barbárie brasileira me faz
muito mal.
Pus-me
a pensar naquela história de haver ou não haver "uma luz no fim do
túnel", o que me trouxe à mente o monumental "Poema da
Purificação", de Carlos Drummond de Andrade.
Ei-lo:
"Depois de tantos combates / o anjo bom matou o anjo mau / e jogou seu
corpo no rio. / As águas ficaram tintas / de um sangue que não descorava / e os
peixes todos morreram. / Mas uma luz que ninguém soube / dizer de onde tinha
vindo / apareceu para clarear o mundo, / e outro anjo pensou a ferida / do anjo
batalhador".
Antes
que alguém pergunte, o que me fez ligar a história da luz no fim do túnel ao
poema de Drummond foram os versos "Mas uma luz que ninguém soube / dizer
de onde tinha vindo / apareceu para clarear o mundo".
É claro que não terei espaço para uma análise mais detida do poema, mas penso que seja possível tecer algumas considerações básicas a respeito do seu talvez enigmático conteúdo. Chamo a atenção, por exemplo, para o que pode parecer paradoxal: a existência de um anjo mau e o fato de esse anjo ter corpo, sangue etc. Chamo a atenção também para a presença da luz que "apareceu para clarear o mundo". Que clareamento será esse? E o adjetivo "batalhador"? É possível definir com plena certeza a qual dos anjos se refere esse termo? Ficamos com muita vontade de achar que batalhador é necessariamente o anjo bom, mas...
Mas
o que me parece mesmo, caro leitor, é que o "anjo bom" e o "anjo
mau" estão num só ser, representam exatamente o que diz o título
("Poema da Purificação"). A "vitória" do anjo bom e a
consequente "morte" do anjo mau (cujo corpo é jogado no rio, cujas
águas se tingem do sangue desse anjo, sangue que não descora) na verdade
simbolizam a batalha que se trava dentro do ser que enfrenta o doloroso
processo de purificação, do qual não se sai sem feridas, que são curadas por
"outro anjo".
Já
sei, já sei, caro leitor. Você talvez esteja se perguntando de onde tirei a
última afirmação ("do qual não se sai sem feridas, que são curadas por
outro anjo"). Explico: o grande e genial Drummond, o modernista Drummond,
que não deixou pedra sobre pedra quando foi necessário (refiro-me, por exemplo,
ao revolucionário poema "No Meio do Caminho"), desta vez se valeu da
tradição, simbolizada pelo uso hoje pouco comum entre nós do verbo "pensar"
com o sentido de "aplicar curativo". A passagem "...e outro anjo
pensou a ferida do anjo batalhador" equivale a "...e outro anjo
aplicou curativo na ferida do anjo batalhador".
Ao fim e ao cabo, cabe ao anjo bom que há em nós matar o anjo mau que também há em nós e cabe aos outros anjos a solidariedade, expressa no poema pelo ato de pensar as feridas resultantes da inexorável batalha.
Ao fim e ao cabo, cabe ao anjo bom que há em nós matar o anjo mau que também há em nós e cabe aos outros anjos a solidariedade, expressa no poema pelo ato de pensar as feridas resultantes da inexorável batalha.
Aí
me lembro da incurável barbárie brasileira e das cenas no hospital de Campina
Grande. Haverá dois anjos em cada um daqueles bárbaros que integram a
"segurança" desse hospital e que fizeram o que fizeram? Haverá dois
anjos nessa escumalha?
Tudo
isso me traz à mente alguns versos de "Os Ombros Suportam o Mundo",
outra obra prima de Drummond: "Alguns, achando bárbaro o espetáculo, /
prefeririam (os delicados) morrer. / Chegou um tempo em que não adianta morrer.
/ Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. / A vida apenas, sem
mistificação".
Tá
difícil, caríssimo e eterno Drummond. Tá muito, muito difícil. É isso.
Pasquale Cipro Neto
Nenhum comentário:
Postar um comentário