domingo, 1 de junho de 2014

A caixa de perguntas

O abandono da educação brasileira é uma das questões sociais mais graves que experimentamos hoje em dia. Pouco podemos fazer enquanto governos projetam seu ódio contra o povo também por meio da educação: contra os jovens, as crianças e o futuro. Os resultados históricos são previsíveis num país que já vive em seu tempo presente os efeitos do desprezo pela educação que nasceu no passado ditatorial brasileiro. Que a ditadura tenha sido introjetada por tanta gente e seja hoje uma constante cultural exige nossa atenção mais delicada.

 
No meio desse quadro triste, em que a profissão de ensinar, em que a experiência da aprendizagem e da formação são mortas diariamente às pauladas, surgem no entanto, luminosidades que nos alegram. A alegria é um ápice de esperança, aquela que a gente sente quando alguma coisa faz sentido e melhora o mundo onde vivemos.
 
Uma dessas alegrias é o livro “A Caixa de Perguntas, desafio vivo em sala de aula” (Ed. Libretos, 2013, 148 p.) de Elenilton Neukamp, professor da rede pública de ensino de Porto Alegre, mestre em educação pela UFRGS e autor de outros dois livros. A única coisa de que me orgulho na vida é dos meus alunos e fico muito feliz em dizer que Elenilton passou pela minha sala de aula sempre trazendo lindas questões, lindos textos. Dessas pessoas inesquecíveis que a gente agradece a sorte de ter encontrado.
 
O livro é um relato de experiência pedagógica com filosofia. Como a disciplina de filosofia é ainda muito recente no ensino fundamental e médio dificuldades fazem parte da coisa mesma: Como ensinar filosofia? O quê ensinar? Como chamar a atenção dos alunos para a experiência do pensamento? Como ajudar os garotos a se interessarem pelos conteúdos do conhecimento, de ética, de estética? Não há professor de filosofia que não se coloque estas questões quando tem diante de si crianças e jovens num contexto de crise geral – política e cultural – da educação. O professor de filosofia sabe que sua aula precisa da alegria do pensamento, a força revolucionária que faz pensar, logo, a aula tem que ser uma “boa” aula. A aula de filosofia é sempre um momento muito especial porque é sempre uma aula sobre o cerne da experiência da vida que mora nos atos de pensar, sentir, discernir e compreender. Toda aula de filosofia transita nesse quadrado mágico feito da básica matéria do ato esclarecido a que damos o nome de filosofia.
 
Elenilton inventou um método para trabalhar com esse universo. Só que ele pretendia uma aula muito democrática na qual todos tivessem, de algum modo, voz. Uma aula em que o comprometimento e o engajamento eram a aposta a pagar. Assim, ele inventou a caixa para que todos pudessem perguntar o que quisessem, do modo como quisessem. A caixinha, em princípio usada em uma turma, ficou famosa na escola e Elenilton foi convocado a usá-la até com as turmas de adultos nas quais também leciona.
 
Sem identificação, sem nomes de pessoas e sem ofensas pessoais, as perguntas criaram vida própria: a vida das ideias das quais vive uma aula de filosofia.
 
A partir daí o livro “A caixa de perguntas” conta sua própria história. Um capítulo impressionante traz uma lista das próprias perguntas que vão desde questões sobre sexualidade até perguntas sobre Deus. O modo como os estudantes as redigem, são um caso a parte que, sinceramente, só lendo pra ver. Mas dou aqui 3 exemplos da diversidade que pode surgir no uso de um método como este:
 
- Por que Deus quis “inventar”o mundo?
 
- Por que a maioria dos profes são chatos?
 
- Ter os dentes tortos influencia na hora do beijo?
 
Recomendo o livro a todos os professores de filosofia de todas as etapas escolares. Mas também sugiro a leitura às pessoas em geral, independentemente de suas idades e profissões. A carência de pensamento entre nós está fundada em um vasto complexo social e cultural, mas tem ligação direta com o medo de pensar, devido à sua proibição (muitas vezes surgida nas próprias faculdades de filosofia em que professores são controladores do que se pode ou não dizer). É este medo/proibição que produz a vergonha de pensar e de falar. Esta vergonha que a aula de filosofia pode ajudar a mudar, porque a aula de filosofia é o lugar onde se aprende a falar e, sobretudo, a ouvir.

 
A Caixa de Perguntas é um presente nesta época em que a sala de aula é um verdadeiro tédio para a maioria dos alunos. Mas também para muitos professores que se sentem perdidos diante do que fazer com crianças e jovens que trazem da cultura e da família aquele desprezo pela educação que, infelizmente, em nosso precário cenário, ainda precisamos como professores e cidadãos combater todos os dias.
 
No quadro da miséria material e espiritual oferecida pelos governos e pelo capitalismo que transformam a educação em problema bancário, a “Caixa de Perguntas” é a generosidade que combate a avareza, a alegria de pensar que combate a ignorância.
Só posso desejar boa leitura.

 
 
Marcia Tiburi

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