"Pai, ferida na perna leva tanto tempo assim
para curar?", disse. "Não, o mendigo precisa reabri-la todos os dias,
senão ela fecha. Ele precisa da ferida, já que vive dela."
Seu aspecto repugnante o transformava em alguém
digno de pena, merecedor de esmola. Era um coitadinho dos anos 50.
O aleijado, a criança com bebê de colo, os
mulambos (lumpen proletariat, um termo famoso do marxismo, significa
"farrapo humano que produz prole") e os cadeirantes formam uma população
de sinal de trânsito parente do mendigo da ferida que descobriu intuitivamente
poder viver do sentimento de pena dos "bem de vida" que passam.
A pena é entendida em psicanálise como
repressão da raiva ("Eu não tenho raiva dela, eu tenho é pena"), uma
repressão derivada da culpa de ter raiva daquela gente que nos chantageia de
maneira sutil. Ter compaixão é diferente, significa sofrer junto.
O rapaz que discursa no ônibus, "eu podia
estar roubando, eu podia estar matando, mas estou aqui pedindo a colaboração de
vocês", já é mais explícito em sua chantagem, pois alude a uma ameaça que
nos produz raiva, mas "que feio sentir isso, afinal...", donde temos pena
e soltamos uns trocados como alívio da culpa social.
"Culpa social". Aí mora uma
crença do senso comum que afirma: os males dos pobres são causados por você, que
teve dinheiro para comprar este jornal, porque você é rico, e quem tem
propriedades é necessariamente ladrão (Proudhon teorizou o lema tão caro às
esquerdas: "A propriedade privada é um roubo").
Sendo assim, a culpa social tornou-se o
principal ativo, a principal alavanca de poder de grupos que se tornaram seus
"sacerdotes", os que falam em nome não mais dos pedintes do sinal, mas de
todos os "desprivilegiados" (em contraste conosco, não importa o quanto
ralemos para viver com dignidade, que somos "privilegiados",
"elites", "capitalistas", "conservadores de direita",
enfim, o demônio encarnado).
Você fica intrigado com a leniência que livra
os "black blocs" da cadeia? Agora já sabe: eles estão punindo os
"ladrões do povo", por isso seus atos são abençoados pelo novo senso
comum.
Foi se instalando a cultura do
"coitadismo": demonstre que você é vítima de algo e tudo lhe será
permitido —e também lhe será fonte de renda e/ou poder.
Quando Madame diz que "a Venezuela não é a
Ucrânia", ela faz a síntese do "coitadismo": o povo da Venezuela
não tem direito de se rebelar contra a ditadura de Nicolás Maduro porque ele é o
defensor máximo do "coitadismo", e o "socialismo bolivariano" é a
aspiração máxima de quem usa o sentimento de culpa "social" para manter o
poder. Democracia? Imprensa livre? Esses são valores burgueses que só
servem às "zelite".
Isso provoca, em quem ainda não aderiu ao
"coitadismo", um estresse de raiva contida e um sentimento de injustiça
impotente que resultam numa depressão ampla, chamada APATIA.
Um pequeno suspiro de revolta em junho?
"Black blocs" neles, e fim.
A péssima educação pública prova que não há
interesse em acabar com a miséria. Claro, os "coitadistas" precisam dela.
Como o mendigo de sua ferida.
Francisco Daudt
Folha de São Paulo
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