Como numa peça
de Gil Vicente, o ministro Barroso acusou Todo Mundo para não punir
Ninguém.
Como num conto de Machado de Assis, "O Cônego
ou Metafísica do Estilo" (leiam), substantivo e adjetivo --que Machado batiza de
"Sílvio" e "Sílvia"-- já haviam se enlaçado na minha cachola e deveriam estar
agora na tela e no papel. Classificavam Gilberto Carvalho de agente sabotador do
governo Dilma a serviço de Lula. Sílvio e Sílvia sabem que a presidente detesta
Carvalho, no que é correspondida. Terão de esperar. Algo mais urgente se
alevantou: Luís Roberto Barroso, a esfinge sem segredos do
STF.
Não me lembro de nada tão grotesco no
tribunal. O ministro decidiu ser o Catão da política, exacerbando a
retórica moralista para cobrar uma reforma que barateie as campanhas eleitorais,
lamentar a inércia dos políticos, afirmar que o idealismo se converteu em
argentarismo, fustigar o "abominável espetáculo de hipocrisia" em que
"todos apontam o dedo contra todos, mas mantêm "seus cadáveres no
armário"... Pego carona na metáfora. Barroso saiu do armário e disse o
que pensa sobre o mensalão: apenas "recursos não contabilizados" de campanha,
como disse Delúbio Soares. Apesar do complexo de Schopenhauer, ele é só
um Delúbio com toga, glacê e fricotes retóricos.
A fala ignora a essência golpista do
mensalão. O que o foragido Henrique Pizzolato, por exemplo, tem a ver com
custo de campanha? Parte do dinheiro que comprava partidos e políticos era
público. Como numa peça de Gil Vicente, o
ministro acusou Todo Mundo para não punir Ninguém. Nome do espetáculo: "A Farsa
de Barroso". E a peroração assombrosa foi condizente com a sordidez
do prólogo.
Um das coisas exóticas que já fiz na vida foi
ter lido o livro "O Novo Direito Constitucional Brasileiro", de Barroso. Ele nos
conta, entre ligeirezas, que era tal a sua ignorância da ritualística do
processo penal que teve de indagar a um repórter desta Folha o que deveria fazer
com o alvará de soltura do terrorista Cesare Battisti. Eu teria
respondido.
Apelando a um procedimento descabido no
julgamento de embargos infringentes --a Preliminar de Mérito--, o ministro
resolveu pegar carona numa conta extravagante de Teori Zavascki --fruto de uma
disciplina em voga chamada "direito criativo"--, e refazer a dosimetria, o
que lhe era vedado nesta fase do processo, para declarar a prescrição da pena
por quadrilha. A escolha era tão esdrúxula que, para que triunfasse, os
ministros que antes absolveram teriam de condenar, mas com mansidão, para que,
então, se declarasse a prescrição. Impossível, como sabe qualquer estudante no
nível "massinha 1" de direito.
Com qual propósito? Barroso queria livrar a cara da turma, mas sem ficar
com a pecha de salva-mensaleiro. Deve ter sido uma das maiores
batatadas da história da corte. Flagrado, teve de refazer o seu voto e
admitir, desenxabido, que estava inocentando todo mundo do crime de
quadrilha.
Ainda que a ignorância fosse culposa, a
argumentação foi tecnicamente dolosa. Segundo disse, na primeira votação,
seus pares usaram a dosimetria para evitar a prescrição e agravar o regime
inicial de cumprimento das penas. Essa é a posição oficial do PT, expressa em
vários documentos. Joaquim Barbosa indagou se
seu voto já estava pronto antes de se tornar ministro. Barroso havia ofendido o
tribunal primeiro.
Nota: Natan Donadon foi condenado por crime
de quadrilha no desvio de R$ 8,4 milhões da Assembleia de Rondônia. Um
bando que atua em escala nacional e que desviou R$ 73,8 milhões só do Fundo
Visanet foi absolvido. Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli
condenaram Donadon, mas absolveram os mensaleiros. Padre Vieira escreveu
que o roubar pouco faz os piratas; o
roubar muito, os Alexandres Magnos.
Ao ler o livro de Barroso, a gente entende que, para ele, a pressão de minorias organizadas, desde que "progressistas" --isto é, de esquerda--, tem mais valor do que a letra da lei. Os nossos bolivarianos estão saindo do armário.
Reinaldo Azevedo
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