domingo, 11 de abril de 2010

Os meus contadores de histórias

Tive na família a graça de ter convivido com dois grandes contadores de contos e causos. Foram, digamos assim, os meus "Forrest Gump". Coisa rara hoje em dia. Tanto o meu avô paterno (João Félix de França) quanto o meu avô materno (Ariamiro Alves de Araújo), agricultores natos, foram sagazes contadores de histórias e eu um ouvinte estremado. Os dois, me relataram, muitas vezes, inúmeras lendas e fatos que me deixaram fascinados na infância. A imaginação, a fé incondicional (típica ao homem do campo), a cultura e o conhecimento popular dos dois era de uma dimensão que a minha tenra idade não tinha como mensurar.

Os dois retratavam histórias e acontecimentos memoráveis, ora por eles vividos, ora por ouvir dizer de outros companheiros do campo ou dos seus próprios pais. Sem perceber, meus avós praticavam o natural repasse das tradições culturais de nosso povo e de nossa gente sertaneja, de geração para geração.

Lembro bem que o meu avô paterno, João Félix de França, era mais irreverente, espirituoso, "prosista", cheio de contos, poesia e relatos “do outro mundo,” hipnotizantes para qualquer criança do meu tope e dos meus nove anos de idade. As sessões com ele começavam sempre à noite, na calçada da velha casa da Rua Odilon Lopes, 226, e eram comumente variadas, iam das tantas casas mal-assombradas em que, corajosamente, passara e pernoitara aos sonhos com prodigiosos "espíritos", a meu ver, abastados e burros, que viviam a indicar, depois de mortos, o lugar onde guardara as economias de toda uma vida de sacrifícios. Botijas encantadas em lugares ermos, debaixo de trapiás, que apesar de suas precisas localizações nunca foram desenterradas por ele, nem por ninguém. Eu vivi muito tempo desejando a oportunidade de sonhar com um pote desses, cheio de chocolates, ki-suco de garrafinha, chicletes ping-pong, pirulitos zorro e balas juquinha, meus maiores tesouros de desejos naquela época.

Meu avô nunca me disse onde encontrar o meu pote dourado. Ele também não encontrara o dele, era perfeitamente aceitável que eu também não tivesse o meu, ainda mais, indicado por uma “alma”. – Doce do outro mundo deve ter gosto de terra, imaginava eu enquanto me conformava com aquele eterno dilema de criança pobre.

Outras noites, o velho João Félix me chamava a atenção para o cuidado com os pássaros noturnos, especialmente com a “rasga-mortalha”, seu canto era sinal de mau agouro e onde ela pousasse, trazia a morte em suas garras. Não era bom ter um bicho desses sentado na cumieira de nossa casa. E eu vivia com uma baladeira na mão a espreita dessa indesejada visita. De certo é que nunca pude arrancar-lhe a asa com uma pedrada. - Eu sempre acordava quando ela vinha!

Dizia ainda o meu avô paterno que em suas jornadas de mascate de redes e peles por essas avenidas de terra batida do sertão, sob o brilho fluorescente da lua cheia, perigoso era a travessia pelas grandes oiticicas postadas diligentemente a beira dos caminhos. Ali, era morada de “visagem”, “almas perdidas” que se ocupavam e se divertiam em assustar os vivos.

Curiosamente, todas essas histórias meu avô as contava à noite. Aquilo tudo era mais que uma rogativa para expulsar pra longe o meu sono de criança. Mas, noite após noite, eu estava lá para ouvir as suas histórias.

De outro lado, o velho Ariamiro, meu avô materno, tinha, digamos, hábitos menos noturnos, gostava de nos contar histórias durante as tardes quentes da velha fazenda Timbaúba, de imorredoura saudade. Se detinha ele mais nos aspectos religiosos e nas tradições da luta com o gado. De certo, foi criado assim. Com certeza seus netos também o seriam e foram, pois cá estou a suscitar do meu velho baú os sentimentos mais afáveis da infância encantada e feliz que pude ter.

Ariamiro era um homem mais centrado, franzino e alto, não falava muito, gostava de assobiar e tinha o costume de ser muito enérgico em seus tratos. Isso, contudo, não lhe tirava a capacidade de nos divertir, de nos contar histórias.

Uma que mais me cativava, era a lenda do Caipora, um negro que durante a noite se transformava em toco de pau acesso, fumegante, fumando seu cigarro. Essas visões nos obrigava a depositar “fumo de rolo” em qualquer feixe de lenha que pudéssemos crer ser o tal Caipora. Aquilo tudo era muito fascinante e televisão alguma batia a audiência do velho sobrado da Timbaúba.

Uma das últimas histórias que o ouvi contar traduzia a fé e as raízes religiosas de nossa sofrida gente nordestina. Vovô, sentado em sua surrada cadeira preguiçosa, numa dessas tardes de chumbo de outubro, onde o calor parecia querer vencer nossos ânimos e tapar nossos ouvidos, nos dizia de seu vaqueiro “Brejeiro” que tinha o dom de “curar” as doenças dos bichos apenas rezando neles, e, às vezes, quando não encontrava o gado doente, se debruçava em seu rastro com credos e ave-marias. Só em último caso, usava remédio do mato para sarar as novilhas. Muitas vezes desejei ter o “Brejeiro” por perto de minhas insistentes dores de garganta e febre. Não precisa nem dizer que quem me acudiu mesmo foi sempre a amoxicilina.

Muitos anos depois, pude, novamente, ouvir história semelhante a do vaqueiro “Brejeiro”, agora contada pelas letras do grande Graciliano Ramos em sua obra “Vidas Secas”. Mudara apenas os personagens, o vaqueiro agora se chamava Fabiano, mas a fé era a mesma do vaqueiro do meu avô.

“(...)Fabiano curou no rastro a bicheira da novilha raposa. Levava no aio um frasco de creolina, e se houvesse achado o animal, teria feito o curativo ordinário. Não o encontrou, mas supôs distinguir as pisadas dele na areia, baixou-se, cruzou dois gravetos no chão e rezou. Se o bicho não estivesse morto, voltaria para o curral, que a oração era forte(...).

Os anos foram passando e as histórias de minha infância foram amainando, a adolescência e a fase adulta bateram à minha porta e os velhos contadores de histórias partiram para encantar crianças lá no céu.

Hoje, crescido, sou pai do meu pequeno Yan Félix. Confesso que tenho tentado sentar-me à noite com ele para falar de adivinhações, botijas, de orações, de Saci Pererê, do vaqueiro Brejeiro, do Caipora, da Mãe da Lua, do Bacurau e do meu mundo de menino. Mas não tem sido fácil o nosso diálogo. Às vezes, acho que ele é quem quer continuar a me contar histórias, mexendo as perninhas, de lá pra cá, sentado em sua cadeirinha de balanço.

Ontem, ele me convenceu da coragem do Homem-Aranha, das aventuras de Nemo, das peripécias do Pica-Pau e do Bob Esponja. Isso ao menos, é o que me lembro ter ouvido antes de adormecer!


Teófilo Júnior

Um comentário:

Unknown disse...

isso sem esquecer do "Vei do Saco" (ai daquele que fizesse travessuras!) É importante lembrar que o cancioneiro infantil brasileiro está cheio de "ameaças infantis" do tipo: Boi, boi, boi...boi da cara preta, pega esse menino que tem medo de careta;(vejam só...e essa era uma canção para fazer as crianças dormirem!!! ah,ah,ah...pobre de nós!)