PROSA CONTEMPORÂNEA
Memorial de Maria
Moura (BestBolso) de Rachel de Queiroz foi talvez o romance que mais me
impressionou este ano. Maria Moura é uma capitã de jagunços, uma espécie de
Diadorim vestindo calças e montando a cavalo, mas sem ambigüidade sexual. O
livro conta a criação, ao longo de muitos anos, de um valhacouto de assaltantes
nas faldas da Serra do Padre. Os conhecimentos da autora sobre a História do
Ceará dão solidez à narrativa, que é precisa e vai no osso. E a prosa é das
melhores que o Brasil já deu. Límpida, forte, cheia de sutilezas inesperadas.
A árvore que falava
aramaico e Cavalos de Cronos (ambos
da Ed. Zouk, Porto Alegre) de José Francisco Botelho, são dois livros de contos
onde o mainstream se alterna com o
fantástico, e no segundo a prosa se alterna com a poesia narrativa. Botelho
(que traduziu para o português obras de Shakespeare e de Conan Doyle, além dos Contos de Canterbury
de Chaucer) é um
narrador de prosa segura, rica de observação. Seus contos fantásticos
exibem um sentimento ominoso que brota ao mesmo tempo da paisagem física
e das
memórias familiares. Há um pouco de Borges e de Kafka, mas nos melhores
momentos ele evoca também os pesadelos ancestrais de Arthur Machen e
Algernon
Blackwood.
Days of Awe de
A. M. Homes foi um volume de contos que traduzi para a Companhia das Letras. A
autora tem uma prosa rápida, cortante, excelentes diálogos, e descreve um
ambiente californiano meio surreal de tão específico; lembra os quadrinhos de
Daniel Clowes. Aquelas histórias de classe média urbana onde uma coisa bizarra
e surreal pode acontecer a qualquer instante.
A Colônia de Férias
(Alfaguara) de Emmanuel Carrère. Publicado num volume conjunto com O Bigode, é a história de um menino
amedrontadiço e fantasiador que se vê ilhado entre gente estranha, sendo que
crimes hediondos ocorrem à sua volta. Carrère explora aquela linha romanesca
bem francesa de descrever com minúcias todas as alternativas e
contra-alternativas de pensamento de uma pessoa apavorada, arrastada por
desejos que não compreende e aos quais tenta dar justificações pueris.
LIVROS SOBRE LIVROS
A Barca de Gleyre
é um clássico, dois volumes das cartas de Monteiro Lobato para seu grande
amigo, o tradutor e escritor Godofredo Rangel. São extensas discussões sobre
mil assuntos mas principalmente literatura. Lobato, escrevendo para uma platéia
de um só, era mais Lobato do que nunca. Poucos livros são capazes de revelar a
este ponto, sem pose, no calor do momento, a paixão pela literatura.
A Marca do Z (Jorge
Zahar Editor) de Paulo Roberto Pires conta a história da Editora Zahar,
uma das
editoras que fizeram a cabeça da minha geração, talvez a melhor editora
de
ciências sociais para o grande público. Cada capa de livro lido dá
vontade de ler de novo. Um livro-homenagem cheio de revelações
sobre as idas e vindas do mercado editorial antes, durante e depois dos
anos da
ditadura militar. E o retrato de um homem que amava os livros.
Em Memória de João
Guimarães Rosa (Ed. José Olympio, obra coletiva) e Joãozito (Ed. José Olympio) de Vicente Guimarães são duas obras
importantes sobre o escritor mineiro. O primeiro registra as numerosas
homenagens logo após sua morte em 1967, inclusive os discursos na Academia
Brasileira de Letras, e traz um ótimo material adicional sobre sua vida e obra.
O segundo são as memórias de seu tio materno Vicente, que pela proximidade
etária foi quase que um primo do escritor. Ambos são essenciais para conhecer o
reflexo de sua personalidade e de sua obra sobre seus contemporâneos.
Autobiografia
Poética (Ed. Autêntica) de Ferreira Gullar é um balanço comedido e
frequentemente autocrítico do grande poeta sobre suas aspirações, paixões,
desencantos e guinadas conceituais. Inclui alguns textos de prosa crítica
sobre poesia, lúcidos e bem argumentados, como tudo que Gullar produziu.
A Arte do Romance
(Companhia das Letras) de Milan Kundera é uma coletânea de artigos sobre a
escrita. Algumas opiniões idiossincráticas, boas reavaliações da obra de seu
conterrâneo Franz Kafka, de Jacques Diderot, e em geral um conjunto de
reflexões que vale a pena ler e considerar.
O flâneur das duas
margens (José Olympio) de Guillaume Apollinaire é uma coletânea de artigos do poeta
surrealista sobre ambientes e personagens obscuros da Paris dos anos 1910.
Poetas, donos de bar, sebistas, vagabundos, todos são retratados com riqueza de
detalhes e de observação. Um mundo de cem anos atrás, mas que parece ainda vivo
e a cores.
Shakespeare &
Co (Casa da Palavra) de Sylvia Beach, é o volume de memórias, também do
princípio do século 20, da livreira que se tornou a primeira editora do Ulisses de James Joyce. Como qualquer
livro desse tipo, é um desfile de episódios pitorescos vividos por grandes
escritores e artistas, suas excentricidades, suas polêmicas, seus pequenos
gestos de generosidade ou de mesquinhez.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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