Nas linhas em branco, que chamo de presente, conto a história dessa centelha que Deus me deu para continuar: a literatura.
Tornei-me leitora muito tarde. Quatorze anos? Em casa de infância, o livro tinha o mesmo valor da gentileza: nenhum. Culpa de ninguém. Dos rancores que guardo, nenhum é literário.
Se teria feito diferença ter lido Dom Quixote de la Mancha
antes de perceber o desencontro maior do mundo? Não sei. O que hoje sei é
que os gigantes eram as sombras das panelas que ela ariava com raiva,
prenúncios do alvo que mudaria para o meu coração. Meus sonhos nunca
foram quixotescos. Minhas resistências é que foram. Foi assim que os
livros me encontraram.
Anjos de centenas de páginas. Meu caráter foi formado por um pai
amoroso e folhas de papel. Nas linhas em branco, que chamo de presente,
conto a história dessa centelha que Deus me deu para continuar: a
literatura.
Estou sempre à espera do livro que vai mudar a minha vida. Há quem seja assim com o amor.
Sou assim com os livros porque muitos deles transformaram momentos
meus de profundo desespero. E de apatia. Para mim, pior que desespero.
Não digo quais porque, como o amor, creio que esses livros
representam o grau mais elevado da intimidade, que nunca se deve
revelar. Se o livro testemunhou seus sonhos ou suas lágrimas, divida-os
apenas com quem divide seus sonhos e suas lágrimas.
Naquela época, percorria quilômetros e quilômetros para lê-los. Onde
eu morava não havia livrarias. Quando faltava a quantia para comprá-los,
arranjava ao menos o da passagem de ônibus para atravessar a cidade e
sentar em um canto qualquer de qualquer livraria, no chão mesmo, e horas
a fio eu lia para esquecer de minha própria história amaldiçoada.
Por isso que sempre que tenho medo ainda me volto para a literatura.
Sempre que estou cansada me volto para a literatura. Se estou muito
feliz, me volto menos, mas me volto para a literatura. Nesses minutos de
felicidade sonho tanto que não me concentro, então a literatura
acontece na minha imaginação, sem rascunhos. É quando me torno a
protagonista fabulosa que a literatura do amor me deu como preferida –
porque sinto que foi ela que me escolheu. Jamais contarei quem é porque
não abro mão da liberdade que só um segredo bem guardado é capaz de dar a
quem é dono dele.
Sei disso não porque li nalgum livro, mas porque guardei bons livros
só para mim, sem mostrar sequer a capa, e a sensação é a de que há algo
em mim que não cabe no mundo. A leitura é um dos caminhos mais
encantadores para a construção da subjetividade.
Nas noites de insônia, quando sou apenas adulta, só a literatura me
devolve a chance de escapar do que não gosto da narrativa contingente
que não me dá escolha do papel que preciso desempenhar.
Escapar é o
dormir.
O dormir também é uma forma de literatura. Histórias improváveis, ou
as mais prováveis. Todo dia é um livro sobre aquilo que me recuso a ler
em consciência. Todo dia é um livro bizarro ou assustador, um livro que
inflama o corpo ou que traz de volta personagens já mortos, por minha
vontade ou pela vontade de Deus.
A literatura é como uma amiga, que permite meu êxtase sem sentir
inveja. Toda vez que perco a esperança, hoje sabendo como ela é, me
volto para a literatura. Confio menos na vida fora dos livros. Como
elegantes que são, eles me envolvem sem dizer que fui fraca.
Nesse mundo de tantas bandeiras, que gritam, que separam, que
machucam e que matam, sinto que essa minha é mais acolhedora. Minha
bandeira só leva em conta o nível de profundidade da natureza humana que
desejo descer, e ela me respeita quando decido apenas colorir os
pensamentos. Confie em mim, venha, ela diz. Só nela confio e vou, digo
então. E os dias passam sem que eu sinta falta de mais nada.
Por isso a literatura é a minha única bandeira. Ela diz só para mim,
no meu tempo, o que preciso saber. Ela me eleva, como se me tirasse de
meu próprio corpo, é quando descanso.
Medito sobre a ordem das coisas. Sobre as razões de ser e de não ser,
e de ter sido como foi. Sei o que entendo e o que não entendo e,
principalmente, o que acho que jamais entenderei. Para cada um desses há
um livro à minha espera.
A leitora que fui menina tinha medo e imaginação, e os livros que li deram forma ao futuro e nome a cada uma de minhas dores.
A leitora que fui moça tinha sonhos, mas não tinha proteção, os
livros então me levantaram a cada tombo pelo assombro do roubo frequente
do melhor de mim.
A leitora que sou mulher redescobriu os cantos sacros da alma, hoje invioláveis.
Assim, estou certa que a escritora que sou, como um Lumière, encaminha a todos os leitores que fui um dia.
Eliana de Castro
Fonte: https://faustomag.com/literatura-dos-meus-risos-e-dos-meus-vicios/
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