Todo mundo
já brincou de quebra-cabeças na infância. Pode ter sido um daqueles mais
simplezinhos, com desenhos da Turma da Mônica. Talvez tenha tido a
sorte (eu não tive) de ser promovido àqueles que vejo hoje nas lojas de
brinquedos, os famosos “puzzles” de 1.500 peças que mostram enormes
castelos medievais ou deslumbrantes paisagens de florestas.
O
quebra-cabeças propõe ao jogador o desafio de reconstituir a figura,
baseado em dois critérios: a imagem e o corte. O corte das peças (que é
padronizado) não coincide com a imagem. Se fosse assim era muito bom – a
árvore era cortada em forma de árvore, o cachorro em forma de cachorro,
etc.
Corte e imagem, no quebra-cabeças, são, por definição, mutuamente irredutíveis. Não podem coincidir.
Georges
Perec (“A Vida Modo de Usar”) cita o exemplo dos quebra-cabeças
artesanais, de madeira, nos quais o artesão corta a peça
individualmente, dando a cada uma um formato ligeiramente diferente do
formato das outras, mesmo que num primeiro olhar as duas pareçam
idênticas. Não há duas peças cortadas de modo idêntico nestes puzzles, e
não há dois jogos idênticos saídos da mão do mesmo artista.
Nossa tarefa
é encaixar as peças pelos dois critérios. Tem horas em que duas peças
se encaixam pelo corte, mas não pela imagem. Tem horas em que parecem se
encaixar pela imagem (digamos, dois pedaços de céu azul), mas não
encaixam pelo corte.
Esse processo lembra a poesia, que também parece um “puzzle”. Isto pode se dar em dois níveis.
Numa forma
fixa, como o cordel ou o soneto, as frases gramaticais não coincidem com
a extensão métrica dos versos e das estrofes. Ficam o tempo inteiro
transbordando para a linha ou a estrofe seguinte. Uma das habilidades do
poeta consiste em conseguir produzir um texto gramaticalmente fluente e
ao mesmo tempo obedecer com rigor aos “cortes” que a métrica impõe ao
discurso verbal.
Num nível
mais elevado, a "imagem" é o conteúdo, tema ou assunto; aquilo que
estamos tentando ler, entender. E o corte são as escolhas feitas pelo
artista: as palavras que usou, o modo como organizou frases, versos,
estrofes.
Ler um poema
corretamente não é lê-lo em função da “imagem”, embora ela deva estar
presente em nossa atenção. Ler bem uma obra literária é lê-la tendo em
vista os “cortes” verbais feitos pelo poeta, o seu modo pessoal de
recortar a substância do poema, o seu “conteúdo”. Se nossa leitura não
satisfizer plenamente esses cortes, será uma leitura errada, de peças
que parecem se encaixar, mas não se encaixam.
Perec afirma que o “puzzle”, por estas características, não é um jogo solitário:
“Todo gesto
que faz o armador de puzzles, o construtor já o fez antes dele; toda
peça que toma e retoma, examina, acaricia, toda combinação que tenta e
volta a tentar, toda hesitação, toda intuição, toda esperança, todo
esmorecimento foram decididos, calculados, estudados pelo outro”.
É assim que o poeta, como um maestro, rege a leitura do poema.
(imagem de Perec recolhida no blog Besta Quadrada, de Halem Souza, Belo Horizonte)
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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