quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

A arte do quebra-cabeças

Todo mundo já brincou de quebra-cabeças na infância. Pode ter sido um daqueles mais simplezinhos, com desenhos da Turma da Mônica. Talvez tenha tido a sorte (eu não tive) de ser promovido àqueles que vejo hoje nas lojas de brinquedos, os famosos “puzzles” de 1.500 peças que mostram enormes castelos medievais ou deslumbrantes paisagens de florestas.

O quebra-cabeças propõe ao jogador o desafio de reconstituir a figura, baseado em dois critérios: a imagem e o corte. O corte das peças (que é padronizado) não coincide com a imagem. Se fosse assim era muito bom – a árvore era cortada em forma de árvore, o cachorro em forma de cachorro, etc. 

Corte e imagem, no quebra-cabeças, são, por definição, mutuamente irredutíveis. Não podem coincidir.

Georges Perec (“A Vida Modo de Usar”) cita o exemplo dos quebra-cabeças artesanais, de madeira, nos quais o artesão corta a peça individualmente, dando a cada uma um formato ligeiramente diferente do formato das outras, mesmo que num primeiro olhar as duas pareçam idênticas. Não há duas peças cortadas de modo idêntico nestes puzzles, e não há dois jogos idênticos saídos da mão do mesmo artista.

Nossa tarefa é encaixar as peças pelos dois critérios. Tem horas em que duas peças se encaixam pelo corte, mas não pela imagem. Tem horas em que parecem se encaixar pela imagem (digamos, dois pedaços de céu azul), mas não encaixam pelo corte.

Esse processo lembra a poesia, que também parece um “puzzle”. Isto pode se dar em dois níveis. 

Numa forma fixa, como o cordel ou o soneto, as frases gramaticais não coincidem com a extensão métrica dos versos e das estrofes. Ficam o tempo inteiro transbordando para a linha ou a estrofe seguinte. Uma das habilidades do poeta consiste em conseguir produzir um texto gramaticalmente fluente e ao mesmo tempo obedecer com rigor aos “cortes” que a métrica impõe ao discurso verbal.

Num nível mais elevado, a "imagem" é o conteúdo, tema ou assunto; aquilo que estamos tentando ler, entender. E o corte são as escolhas feitas pelo artista: as palavras que usou, o modo como organizou frases, versos, estrofes. 

Ler um poema corretamente não é lê-lo em função da “imagem”, embora ela deva estar presente em nossa atenção. Ler bem uma obra literária é lê-la tendo em vista os “cortes” verbais feitos pelo poeta, o seu modo pessoal de recortar a substância do poema, o seu “conteúdo”. Se nossa leitura não satisfizer plenamente esses cortes, será uma leitura errada, de peças que parecem se encaixar, mas não se encaixam.

Perec afirma que o “puzzle”, por estas características, não é um jogo solitário: 

“Todo gesto que faz o armador de puzzles, o construtor já o fez antes dele; toda peça que toma e retoma, examina, acaricia, toda combinação que tenta e volta a tentar, toda hesitação, toda intuição, toda esperança, todo esmorecimento foram decididos, calculados, estudados pelo outro”. 

É assim que o poeta, como um maestro, rege a leitura do poema.




(imagem de Perec recolhida no blog Besta Quadrada, de Halem Souza, Belo Horizonte)

Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

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