Apesar do nome sugestivo, o ofício de Antônio Letreiro nada tinha a
ver com letras em placas ou fachadas. Muito menos com literatura. De
todo modo, se a lenda faz justiça ao mito, seguramente foi o responsável
pelo que escreveram em dezenas, talvez centenas de lápides e atestados
de óbito.
A fama dele e a
curiosidade em saber mais sobre sua vida e obra me acompanham desde o
tempo de menino pequeno em Bananeiras, onde as proezas de Antônio
Letreiro eram narradas com admiração e temor reverencial por alguns dos
homens brabos do lugar.
De carona em verso bonito de Belchior,
confesso que dessas histórias não ficou muita coisa guardada nas
prateleiras da memória. Daí… A que vou contar adiante tem um pouco de
floreio sobre narrativa que há dois dias me fez o Professor Vicente, meu
pai.
Remete a período em que Antônio Letreiro ficou homiziado na
fazenda de coiteiro lá pras bandas da Serra do Teixeira. Esconderam o
homem na garagem do trator que arava a terra e engatava carroça de
carregar gente, gado, feira e ferramentas. Servia também para puxar
carro atolado nos baixios da estrada de Matureia.
Letreiro foi
muito bem tratado na fazenda, apesar das circunstâncias. Por duas ou
três semanas, somente saia do esconderijo à noite, para fazer
necessidades no mato. O resto do tempo passava trancado, abrindo a porta
apenas para Luíza, filha mais velha do fazendeiro, trazer-lhe alguma
refeição ou um balde de água para o banho.
Pois não é que Letreiro
apaixonou-se pela moça! E ela, na primeira investida do apaixonado,
esquivou-se da melhor forma possível e correu para contar ao pai, já
avisando que, doravante, a tarefa de alimentar aquele “animal” deveria
ser transferida para outra pessoa de confiança.
Atordoado e muito
mais temendo o que poderia acontecer se Letreiro se sentisse rejeitado, o
fazendeiro reuniu a família e disse que todos iriam com ele para
Teixeira. Viagem de urgência verossímil. Dariam como desculpa a visita a
um parente próximo que estava morre-não-morre.
Como era ainda
meio da manhã, o patrão chamou um vaqueiro que lhe parecia ser o mais
valente da turma e lhe passou o serviço. Não sem antes dar ciência ao
rapaz de quem e do quê se tratava.
– É o seguinte… Quando for
pouco antes de meio dia, você pega o almoço dele com Joana, na cozinha, e
leva. Se ele perguntar por Luíza, diga que ela foi comigo pra cidade.
Agora, pega isso aqui, ó, e mistura no feijão, visse? E não fica
esperando ele comer, não. Deixa o prato e vai pra fora. Eu volto lá pras
três e resolvo o que fazer.
O vaqueiro tentou fazer tudo conforme
o combinado. Deu ruim porque começou a se preocupar quando bateu na
porta da garagem duas ou três vezes e ninguém respondeu. Luíza não batia
nem precisava bater, evidente. Letreiro estranhou, lógico. Tanto que
esperou pelo menos um minuto para perguntar “quem é?”.
Após ouvir
resposta e explicações, deu uma conferida por um buraco da madeira e
resolveu atender. Mas, assim que abriu, deu com alguém tremendo mais do
que vara verde, faltando pouco para derrubar o prato no chão. Sem se
alterar diante da situação, Letreiro perguntou se o rapaz estava
“sentindo alguma coisa”.
“Tô meio doente”, balbuciou o jovem.
“Deve ser fome”, diagnosticou Letreiro, prescrevendo no ato o remédio.
“Venha, entre, sente ali e coma”. Foi aí que o vaqueiro desabou. Ficou
de joelhos e, além de tremer, desatou a chorar e a pedir “pelo amor de
Deus” por sua vida. Pedido de clemência parcialmente atendido.
“Vamos
fazer o seguinte. Você come só um pouquinho, pra não dar na fraqueza”,
propôs Letreiro, que com uma mão puxou o rapaz por um braço, obrigando-o
a se levantar. Na outra mão, um 38 cano longo engatilhado. O refém foi
levado até um canto da garagem e forçado a engolir uma colherada.
Foi só um pouquinho mesmo, mas suficiente… A estricnina agiu rápido.
***
O
fazendeiro voltou sozinho à propriedade. No meio da tarde, como
prometera. Foi direto até a garagem, onde encontrou o corpo do vaqueiro.
Saiu de lá correndo, desesperado, na direção da casa grande, já
pensando em que cômodo se refugiaria. Antônio Letreiro o aguardava na
sala.
“Fique aperreado não, Doutor. Vou fazer nada com o senhor
não. Em consideração e estima por sua sua filha, fique sabendo. Não
quero ver a bichinha sofrer. E também porque lhe devo favor. Mas quero o
dinheiro que puder me arrumar e seu jipe pra ir embora daqui”, disse o
pistoleiro. Prontamente atendido.
***
Antônio
Letreiro foi morto no começo dos setenta. Na covardia. Tiro na nuca.
Disparado, segundo consta, por tenente PM que armou emboscada para
prender, prendeu e decidiu matar o preso antes de entregá-lo à Justiça.
Antes
que Letreiro fosse solto por algum deputado, prefeito ou coronel das
antigas com poder bastante para mandar em delegado e juiz no interior da
Paraíba.
Do Blog do Rubão
Fonte e créditos aqui
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