domingo, 3 de dezembro de 2017

Letreiro

Apesar do nome sugestivo, o ofício de Antônio Letreiro nada tinha a ver com letras em placas ou fachadas. Muito menos com literatura. De todo modo, se a lenda faz justiça ao mito, seguramente foi o responsável pelo que escreveram em dezenas, talvez centenas de lápides e atestados de óbito.

A fama dele e a curiosidade em saber mais sobre sua vida e obra me acompanham desde o tempo de menino pequeno em Bananeiras, onde as proezas de Antônio Letreiro eram narradas com admiração e temor reverencial por alguns dos homens brabos do lugar.

De carona em verso bonito de Belchior, confesso que dessas histórias não ficou muita coisa guardada nas prateleiras da memória. Daí… A que vou contar adiante tem um pouco de floreio sobre narrativa que há dois dias me fez o Professor Vicente, meu pai.

Remete a período em que Antônio Letreiro ficou homiziado na fazenda de coiteiro lá pras bandas da Serra do Teixeira. Esconderam o homem na garagem do trator que arava a terra e engatava carroça de carregar gente, gado, feira e ferramentas. Servia também para puxar carro atolado nos baixios da estrada de Matureia.

Letreiro foi muito bem tratado na fazenda, apesar das circunstâncias. Por duas ou três semanas, somente saia do esconderijo à noite, para fazer necessidades no mato. O resto do tempo passava trancado, abrindo a porta apenas para Luíza, filha mais velha do fazendeiro, trazer-lhe alguma refeição ou um balde de água para o banho.

Pois não é que Letreiro apaixonou-se pela moça! E ela, na primeira investida do apaixonado, esquivou-se da melhor forma possível e correu para contar ao pai, já avisando que, doravante, a tarefa de alimentar aquele “animal” deveria ser transferida para outra pessoa de confiança.

Atordoado e muito mais temendo o que poderia acontecer se Letreiro se sentisse rejeitado, o fazendeiro reuniu a família e disse que todos iriam com ele para Teixeira. Viagem de urgência verossímil. Dariam como desculpa a visita a um parente próximo que estava morre-não-morre.

Como era ainda meio da manhã, o patrão chamou um vaqueiro que lhe parecia ser o mais valente da turma e lhe passou o serviço. Não sem antes dar ciência ao rapaz de quem e do quê se tratava.

– É o seguinte… Quando for pouco antes de meio dia, você pega o almoço dele com Joana, na cozinha, e leva. Se ele perguntar por Luíza, diga que ela foi comigo pra cidade. Agora, pega isso aqui, ó, e mistura no feijão, visse? E não fica esperando ele comer, não. Deixa o prato e vai pra fora. Eu volto lá pras três e resolvo o que fazer.

O vaqueiro tentou fazer tudo conforme o combinado. Deu ruim porque começou a se preocupar quando bateu na porta da garagem duas ou três vezes e ninguém respondeu. Luíza não batia nem precisava bater, evidente. Letreiro estranhou, lógico. Tanto que esperou pelo menos um minuto para perguntar “quem é?”.

Após ouvir resposta e explicações, deu uma conferida por um buraco da madeira e resolveu atender. Mas, assim que abriu, deu com alguém tremendo mais do que vara verde, faltando pouco para derrubar o prato no chão. Sem se alterar diante da situação, Letreiro perguntou se o rapaz estava “sentindo alguma coisa”.

“Tô meio doente”, balbuciou o jovem. “Deve ser fome”, diagnosticou Letreiro, prescrevendo no ato o remédio. “Venha, entre, sente ali e coma”. Foi aí que o vaqueiro desabou. Ficou de joelhos e, além de tremer, desatou a chorar e a pedir “pelo amor de Deus” por sua vida. Pedido de clemência parcialmente atendido.

“Vamos fazer o seguinte. Você come só um pouquinho, pra não dar na fraqueza”, propôs Letreiro, que com uma mão puxou o rapaz por um braço, obrigando-o a se levantar. Na outra mão, um 38 cano longo engatilhado. O refém foi levado até um canto da garagem e forçado a engolir uma colherada.
Foi só um pouquinho mesmo, mas suficiente… A estricnina agiu rápido.

***
O fazendeiro voltou sozinho à propriedade. No meio da tarde, como prometera. Foi direto até a garagem, onde encontrou o corpo do vaqueiro. Saiu de lá correndo, desesperado, na direção da casa grande, já pensando em que cômodo se refugiaria. Antônio Letreiro o aguardava na sala.

“Fique aperreado não, Doutor. Vou fazer nada com o senhor não. Em consideração e estima por sua sua filha, fique sabendo. Não quero ver a bichinha sofrer. E também porque lhe devo favor. Mas quero o dinheiro que puder me arrumar e seu jipe pra ir embora daqui”, disse o pistoleiro. Prontamente atendido.

***
Antônio Letreiro foi morto no começo dos setenta. Na covardia. Tiro na nuca. Disparado, segundo consta, por tenente PM que armou emboscada para prender, prendeu e decidiu matar o preso antes de entregá-lo à Justiça.

Antes que Letreiro fosse solto por algum deputado, prefeito ou coronel das antigas com poder bastante para mandar em delegado e juiz no interior da Paraíba.

Do Blog do Rubão
Fonte e créditos aqui

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