O mundo existe ou é uma ilusão dos nossos olhos? Para mim
isso era tema dos romances de FC de Richard-Bessière ou de Philip K. Dick, não
era assunto para letra de música. O mundo da música era tão concreto quanto um
elétron; e tão consensual quanto o Meridiano de Greenwich. As canções orientais
dos Beatles foram as primeiras que tocaram no assunto: “Venha cá, velho, você
acha que esse mundo que nós estamos existe mesmo, ou tudo é somente uma
ilusão?”
Pergunta mais profícua não foi feita desde que Arquimedes ou
Bertrand Russell questionou o teorema tal ou qual. A vanguarda européia do
começo do século 20 já tinha amassado o biscoito da metalinguagem. O
questionamento do Real, que por um lado vinha do misticismo do Oriente, e por
outro vinha de viagens alucinógenas dos músicos, se misturava a hipóteses de
físicos sobre universos múltiplos ou à teoria também chamada de “somos o
video-game de Alguém”.
Ian MacDonald, cuja bola vivo a encher merecidamente nesta
coluna, tem uma observação interessante sobre “Penny Lane” dos Beatles. (De
passagem: ele observa que o piano em staccato dessa faixa agradou tanto nessa
gravação, feita entre dezembro de 1966 e janeiro de 67, que os Beatles voltaram
a usá-lo com variantes nas gravações subsequentes de “Fixing a Hole”, “Getting
Better”, “With a Little Help from my Friends” e “You Mother Should Know”.) Ele
cita Lennon garantindo que tudo ali é tirado de memórias visuais dele, tudo é
factual. Toda memória é a foto de um reflexo numa nuvem, mas a intenção do
poeta foi mesmo a de falar do que havia. O bombeiro, o barbeiro, o cara do
banco, as crianças...
E MacDonald diz, sobre o teor psicodélico da música:
“Essa canção é tão subversivamente alucinatória quanto ‘Strawberry Fields’.
Apesar da aparente inocência, há em toda a produção dos Beatles poucas frases
tão impregnadas de LSD do que o verso (numa rajada fremente de vozes
ornamentais) em que a Enfermeira ‘feels as if she’s in a play’... and ‘is,
anyway’”.
A Enfermeira tem aquele insaite instantâneo de que
tudo que vê em torno (e que a música descreve) não é “real”: ela está mesmo é
numa peça, numa encenação, numa montagem. “E afinal é mesmo”, diz o narrador
onisciente da canção. Ela está numa
canção dos Beatles... e de repente percebe que não existe. Como aquele
personagem eletrônico em Simulacron-3 de Galouye, que vem a saber que é
apenas um carinha-de-game, mas para ser nosso interlocutor naquele mundo ele
precisa saber que em certa medida ele não é real. Tremenda crise existencial
pro personagem a quem isso acontece. Mais tranquilo ficar com Mario Quintana:
“Pra que pensar? Também sou da paisagem”.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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