“O Enigma” é o último texto do livro Outros Poemas,
que reúne os poemas escritos por Carlos Drummond de Andrade entre 1946 e
1947. É um dos raros poemas em prosa de Drummond, pelo menos naquela
fase inicial de sua obra, dos dez primeiros livros enfeixados em Reunião.
Sempre o considerei uma espécie de parábola kafkeana, de alegoria hermética. Nunca me detive sobre ele, e é um texto de Drummond que jamais vi comentado por quem quer que fosse. Relendo-o, dias atrás, ocorreu-me uma interpretação óbvia. Nada nos parece tão óbvio quanto uma coisa que não conseguimos ver durante décadas e de repente enxergamos.
O texto começa assim: “As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma obscura lhes barra o caminho.”
A curta parábola é contada do ponto de vista das pedras (que são seres pensantes e sentintes), as quais se deparam inesperadamente com essa “forma obscura”, com essa “coisa sombria, desmesurada” que se coloca à sua frente, sem nada dizer, sem nada fazer.
As pedras tentam em vão comparar este acontecimento a outros do passado, mas aquele objeto “em nada se assemelha às imagens trituradas pela (sua) experiência”. As pedras param, imobilizam-se diante daquilo.
Diz o narrador: “É mal de enigmas não se decifrarem a si próprios”. E a Coisa nada diz, nada faz, limita-se a colocar-se à frente das pedras, que se lastimam, achando inúteis sua “inteligência” e sua “sensibilidade”, incapazes de ajudá-las naquele impasse.
E o impasse não se resolve: anoitece, o luar se espalha sobre a paisagem, e “...a Coisa interceptante não se resolve. Barra o caminho e medita, obscura.”
Eu tenho pra mim que esse poema é um recontar às avessas do mais famoso poema de Drummond: “No meio do caminho tinha uma pedra... Nunca esquecerei deste acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas...”
Desta vez, o mesmo evento é relatado do ponto de vista das pedras que se deparam com essa criatura, que “travou o avanço das pedras” e que acabará fazendo o mesmo com todas as criaturas: “o enigma tende a paralisar o mundo”.
O enigma é o Homem, a criatura que ao ver a pedra registra sua existência mas não chega a uma conclusão sobre ela. “No meio do caminho” é um exemplo perfeito do poema existencialista, onde se constata a apavorante realidade das coisas físicas, e o (mais-apavorante-ainda) vazio espiritual ou transcendental por trás delas.
A incapacidade do poeta para entender as pedras no primeiro poema encontra simetria na incapacidade das pedras para entendê-lo, no segundo. Ambos são enigmas um para o outro.
Muitos anos depois do seu poema emblemático, Drummond revira pelo avesso a experiência numinosa que tivera naquele “meio do caminho” (que evoca o “nel mezzo del camin di nostra vita” de Dante) e parece nos dizer que não somos apenas alguém que não decifra um Enigma, somos um Enigma também, que outras criaturas não conseguem decifrar.
Sempre o considerei uma espécie de parábola kafkeana, de alegoria hermética. Nunca me detive sobre ele, e é um texto de Drummond que jamais vi comentado por quem quer que fosse. Relendo-o, dias atrás, ocorreu-me uma interpretação óbvia. Nada nos parece tão óbvio quanto uma coisa que não conseguimos ver durante décadas e de repente enxergamos.
O texto começa assim: “As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma obscura lhes barra o caminho.”
A curta parábola é contada do ponto de vista das pedras (que são seres pensantes e sentintes), as quais se deparam inesperadamente com essa “forma obscura”, com essa “coisa sombria, desmesurada” que se coloca à sua frente, sem nada dizer, sem nada fazer.
As pedras tentam em vão comparar este acontecimento a outros do passado, mas aquele objeto “em nada se assemelha às imagens trituradas pela (sua) experiência”. As pedras param, imobilizam-se diante daquilo.
Diz o narrador: “É mal de enigmas não se decifrarem a si próprios”. E a Coisa nada diz, nada faz, limita-se a colocar-se à frente das pedras, que se lastimam, achando inúteis sua “inteligência” e sua “sensibilidade”, incapazes de ajudá-las naquele impasse.
E o impasse não se resolve: anoitece, o luar se espalha sobre a paisagem, e “...a Coisa interceptante não se resolve. Barra o caminho e medita, obscura.”
Eu tenho pra mim que esse poema é um recontar às avessas do mais famoso poema de Drummond: “No meio do caminho tinha uma pedra... Nunca esquecerei deste acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas...”
Desta vez, o mesmo evento é relatado do ponto de vista das pedras que se deparam com essa criatura, que “travou o avanço das pedras” e que acabará fazendo o mesmo com todas as criaturas: “o enigma tende a paralisar o mundo”.
O enigma é o Homem, a criatura que ao ver a pedra registra sua existência mas não chega a uma conclusão sobre ela. “No meio do caminho” é um exemplo perfeito do poema existencialista, onde se constata a apavorante realidade das coisas físicas, e o (mais-apavorante-ainda) vazio espiritual ou transcendental por trás delas.
A incapacidade do poeta para entender as pedras no primeiro poema encontra simetria na incapacidade das pedras para entendê-lo, no segundo. Ambos são enigmas um para o outro.
Muitos anos depois do seu poema emblemático, Drummond revira pelo avesso a experiência numinosa que tivera naquele “meio do caminho” (que evoca o “nel mezzo del camin di nostra vita” de Dante) e parece nos dizer que não somos apenas alguém que não decifra um Enigma, somos um Enigma também, que outras criaturas não conseguem decifrar.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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