segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Ao jovem juiz

Todos devemos cuidar para que a juizite ou suas formas mais graves não nos tomem as cabeças


 Ministro Og Fernandes na primeira sessão da Corte Especial do STJ em 2017

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida
(Carlos Drummond de Andrade – Poema de Sete Faces, 1930)

A mim, o anjo manifestou-se em 1981. Desde 73 era repórter. No ano seguinte, formei-me ao mesmo tempo em jornalismo e direito. A cobertura diária dos tribunais me aproximou cada vez mais do Judiciário, ainda que com uma visão crítica. Em 77, passei também a advogar. A magistratura me atraiu pela independência do juiz e pela possibilidade de distribuir justiça. Passar no concurso foi o passo seguinte; sou juiz até hoje.

Tornar-se juiz é receber um poder quase divino. A você, jovem concursado, caberá decidir sobre o nascimento e a morte, o amor e o ódio, os dramas humanos em todos os aspectos, dos mais singelos aos da mais alta indagação. Você tornará o injusto, justo; o indigno, digno; a mentira, verdade. E isso em razão da (nada) simples aprovação em um processo seletivo. Toda essa capacidade intelectual, aplicada na aprovação, não pode se limitar ao estudo do Direito.

É preciso honrar e ser leal à confiança pública depositada em você. Esse crédito é obtido ao longo dos anos. O capital social do juiz é resultado direto do investimento em sua própria biografia. E não há férias morais no exercício da justiça. Como disse o ministro aposentado da Suprema Corte mexicana Juan Romero, juízes, assim como professores, sacerdotes e mães, estão em posição privilegiada de observar condutas humanas, das melhores às piores. Esse duro privilégio impõe que a oportunidade seja aproveitada para orientar não só as condutas dos demais, mas a sua própria, tornando-se a cada dia uma pessoa – e um profissional – melhor.

Esse especial poder coloca Vossas Excelências em um palco, para que sejam aplaudidos. A vaidade é grande e constante risco, e todos devemos cuidar para que a juizite – ou suas formas mais graves, a desembargadorite e a ministrite – como as perucas inglesas, não nos tomem as cabeças.

Tais perucas, por sinal, têm origem no fato de os juízes não desejarem ser reconhecidos pelo povo fora das cortes. Neste século, em que – felizmente – democracia e transparência estão na moda, não nos é dado esse direito ao escondimento.

Ao juiz é indispensável ser transparente. Essa transparência engloba não só seu processo decisório, suas fundamentações, mas também a vida pessoal, amizades e condutas sociais. Além disso, como à mulher de César, não basta ser isento, honesto, competente e imparcial: é preciso ainda parecer ser. Essa necessidade decorre do processo de legitimação do Judiciário: para que seja aceito pela sociedade, é preciso que o poder – e as pessoas que o encarnam – tenha credibilidade.

Ser transparente, entretanto, não quer dizer uma obrigação de manter-se nos holofotes, principalmente nos das TVs. A vanglória precisa ser controlada, para que não nos tornemos especialistas preferenciais da mídia, convidados a opinar até, quem sabe, sobre assuntos que saibamos. É importante atenção para não nos deixarmos seduzir pelo fascínio que microfones e fama exercem. Também não podemos esquecer que a mídia está inserida em um contexto amplo e complexo, conexo aos campos político – exercendo influência – e econômico – buscando audiência. Nessa busca, não raro, opta pelo espetacular sobre o autêntico e pelo sensacional ao relevante. Estar na mídia constantemente não é sinônimo de muito mais que servir a esses anseios.

O outro lado da moeda é se tornar réu no tribunal da opinião pública. No exercício do poder, o magistrado tem o cruel privilégio de estar a sós com sua consciência. Sem chefe a lhe ditar o trabalho, sem obrigações externas, apoiado em suas garantias de independência e de autonomia, o juiz tem um só compromisso: desempatar o conflito, ainda que contrariando a expectativa da maioria.

No mais das vezes, não é preciso procurar muito: a compreensão do certo e do errado é intuitiva. Mas há os chamados casos difíceis. Se um Parlamento, plural e com a legitimação direta do voto, se dá o direito de adiar indefinidamente a solução de certos temas, um magistrado não tem a mesma discricionariedade. À falta de certeza, analise o assunto sob as mais diversas vertentes. Permita-se tempo para julgar.

Além disso, se ao juiz não é dado ter medo do erro ou da crítica, também não é dado crer-se acima do bem ou do mal. Ninguém é infalível. O bom juiz pode ter dúvidas e, até, arrependimentos: o único erro inescusável é o de má-fé. O magistrado não sabe mais sobre certo tema que um advogado especialista; o que ele sabe mais é sobre uma certa técnica de decidir conflitos. Aceite os erros e as críticas, mesmo duras: aprende-se mais com elas que com os elogios, que tanto agradam quanto entorpecem.

Voltando a falar em mídia, estamos em tempos das sociais. Esses novos canais de interação digital permitem ao juiz aproximar-se da comunidade local e jurídica, entre outros tantos interesses. Se é importante não se fechar em torres de marfim, é também imperativo não perder a temperança. O juiz, na internet, continua sendo juiz. E assim deve se portar.
 
Og Fernandes  
Ministro do STJ

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