Por
que nosso cinema brasileiro é tão inferior ao argentino? A Argentina está
quebrada há anos. Sua política é risível (peronismo de todos os lados). Sua
presidente atual, uma bolivariana louca.
Mas
"los hermanos" continuam anos-luz à nossa frente em uma porção de
coisas, entre elas o cinema. A "cultura" brasileira é ainda um atraso
em comparação à argentina.
Nosso
cinema patina na fórmula da comédia escrachada, masturbações ao redor do amor
neurótico, do "coitadismo" (coitado do pobre, do bandido, do drogado)
ou de seu contrário: pobre é lindo, bandido é lindo, drogado é lindo. E agora
uma novidade: as questões de gênero.
Existe
um lugar-comum para o cinema inteligentinho entre nós: a crítica social.
Parodiando
o grande Oscar Wilde, quando dizia que toda poesia sincera é ruim, eu diria que
todo filme de crítica social é ruim. No mínimo, chato. E não deve melhorar, na
medida em que os jovens cineastas continuam sendo formados, em grande parte, no
culto a Cuba como meca da resistência ao capital -dá até vontade de rir, se não
fosse caso para chorar...
E
aí, chegamos a "Relatos Selvagens", dirigido pelo argentino Damián
Szifrón, que conta seis histórias curtas sobre violência.
Não,
você não vai ver um filme falando de como o capital é responsável por todas as
desgraças do mundo, nem sobre como a sociedade desigual produz todo o mal.
"Relatos Selvagens" não é infantil -e, quem pensa que a violência é
fruto do capitalismo, é infantil.
Mas,
claro, as relações entre as pessoas num mundo do dinheiro são parte de como se
dá a violência.
Por
exemplo, numa das histórias do longa, o personagem de Ricardo Darín é esmagado
por algo que conhecemos muito bem: a parceria criminosa entre governo e as
empresas privadas que prestam serviços a ele, gerando todo o aparato de multas
no trânsito nas grandes cidades, câmeras fotográficas, guinchos e afins.
Além,
claro, da burocracia enlouquecedora, feita para inviabilizar qualquer tentativa
de reação por parte das pessoas.
Entretanto,
pela própria apresentação do filme, vemos que o lugar da violência parece estar
além do maniqueísmo típico das ciências sociais: os animais selvagens olhando
para as câmeras que os fotografam relevam nosso parentesco de alma com eles.
O
tratamento da violência no longa parece ser o seguinte: a violência é
constitutiva da espécie e a civilização faz o que pode com isso. Inclusive
porque é a própria civilização quem estimula a violência, muitas vezes vista
como o "ato de coragem" -que, em um dos relatos, faz um homem
recuperar o respeito da própria esposa.
A
violência é feia, destrutiva, ridícula. Mas, às vezes, a negação dela seria
destrutiva, como na história em que um milionário, achacado pela corrupção do
sistema judiciário argentino, decide ser mais agressivo na negociação da
propina e consegue reduzir seus gastos com um crime que envolve seu filho, um
mauricinho irresponsável.
Aliás,
nesse mesmo caso vemos como as classes menos favorecidas sabem muito bem como
manipular seus "ganhos" no esquema de corrupção. Um cínico diria que
a corrupção também pode ser inclusiva.
Noutra
história, a diferença de "natureza" entre duas pessoas distintas pode
fazer com que uma, com todas as razões do mundo para se vingar, se mantenha
imune ao instinto violento e outra, sem nenhuma relação com o caso em questão,
se revele uma besta assassina.
Diferenças
de caráter individual, claro, eram consideradas um "fetiche" burguês
pelo velho Marx.
Não
faltaria em uma obra consistente como "Relatos Selvagens" o
reconhecimento da íntima relação entre violência e Eros. A história da festa de
casamento traz à tona a sabida "energia positiva da agressividade" no
tesão entre um homem e uma mulher. A paz eterna é brocha.
No
primeiro relato, somos levados a pensar: qual gostosa nunca trocou o namorado
bundão pelo amigo descolado? Quem nunca riu de alguém medíocre? Qual terapeuta
nunca subiu o preço da sessão?
Bem
vindos à vida real, e não à pasmaceira politicamente correta brasileira.
Luiz
Felipe Pondé, pernambucano, filósofo,
escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como
comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários
títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Escreve às segundas.