Penso que só nós, humanos, podemos contar uma história que começa assim: “Foi logo depois que o mundo acabou. As águas baixaram, a enorme arca encalhou no flanco de uma planície e a vida rotineira recomeçou com suas esperanças de sempre, inclusive a de poder, um dia, terminar...”
A arca de Noé não era um Titanic, embora o Titanic tivesse uma inconfundível inspiração mitológica. Mas o Titanic, aquele navio inafundável, fabricado com a certeza da ciência, submergiu. Enquanto a Arca — construída na base da fé — não soçobrou.
Por outro lado, o Titanic levava milionários num passeio luxuoso e imigrantes pobres que iam “fazer a América” naqueles velhos tempos que ela ainda podia ser feita.
É claro que ambos os navios tinham um povo escolhido que sobreviveria. No caso do Titanic, testemunhamos a sobrevivência habitual dos milionários e dos espertos. Os de terceira classe morreram tão escandalosamente que as regras foram drasticamente modificadas. O Titanic e a Arca de Noé representam, cada qual a seu modo, um fim de mundo.
A Arca, porém, como um instrumento de salvação, não podia afundar. Ela corrigia erros. Foi uma advertência e um recall do Criador para a humanidade. Os filhos de Adão e Eva, híbridos de barro, carne, osso, sopro divino e bestialidade não iam dar certo.
Para quem vive querendo começar a vida; para quem tem arrependimentos intransponíveis e gostaria de zerar sua existência, a passagem bíblica oferece um conforto: até mesmo o Criador — onisciente, onipotente e onipresente — teve seus momentos de dúvida. Valeu a pena criar um intermediário, um ser entre os animais e os anjos?
Não sabemos. O que se conhece, entretanto, é que sempre há um grupo que se imagina escolhido e, volta e meia, diz que o mundo vai acabar. Os eleitos são salvos por alguma Arca de Noé ou foguete intergaláctico como nos velhos e esquecidos contos de Isaac Asimov e de Ray Bradbury.
São os escolhidos que dão testemunho de como o mundo acabou e — graças a um profeta — foi refeito na esperança de um aperfeiçoamento moral que custa e, às vezes, chega.
No fundo, como diz a Dra. Camélia, uma psicanalista admiradora de antropologia, esses mitos não falam apenas do fim do mundo, falam — isso sim — da imortalidade dos eleitos. Daqueles que estão além do mundo porque seguiram regras morais mais fortes que o próprio mundo — esse planeta que, no fundo, é frágil e terminal se não segue algum mandamento.
Vi o mundo acabar muitas vezes, disse o professor. Primeiro pela água, depois pelo fogo, depois pelas bombas atômicas do Dr. Strangelove. De 1000 passarás, mas a 2000 não chegarás! Estávamos em 1948 e faltava tanto para o 2000 que eu me perdi. Afinal, havia muitas coisas mais importantes para pensar e fazer do que me preparar para o fim do mundo.
E, no entanto, essa década de 2000 foi clara na demonstração de que eu era mais um náufrago, a ser salvo pela paciência e pela generosa ternura humana.
Por que será que, mesmo nestes tempos de utilitarismo racional e de realismo capitalista, tanta gente ainda acredita no fim do mundo?
Porque eles vão realizar uma façanha e tanto: vão sobreviver ao planeta e sentir aquela onipotência apocalítica típica dos milenaristas.
Mas, tirando as fantasias, o mito do fim do mundo revela também uma insatisfação permanente com a vida, tal como a experimentamos: com suas imperfeições, traições, picuinhas, faltas e covardias: com a impossibilidade de seguir os ideais.
Quem sabe, diz esse mito de fim de mundo, um dia tudo isso vai mudar e a vida neste mundo será justa e perfeita promovendo, enfim, o encontro da teoria com a prática?
No fundo, o ocidente progressista e capitalista que acumula cada vez mais dinheiro sempre foi tributário soluções finais para a vida.
Outros povos se satisfazem em aceitar o que reconhecem como parte e parcela de contradições impossíveis de escapar quando se vive em coletividade. Mas nós, crentes no desenvolvimento da espécie e nos estágios evolutivos, tendemos a confundir progresso técnico com avanço moral e pensamos que nossas bombas atômicas são superiores aos arcos e flechas dos nossos irmãos selvagens.
Neste sentido, o mito do fim do mundo seria também uma advertência ao nosso estilo de vida fundado num consumo e numa sofreguidão inesgotáveis. Um modo de dispor do planeta e dos seus recursos que impedem o seu reconhecimento humano.
Essa, penso, seria o centro dessa última onda de fim de mundo que acaba de passar. Um retorno apocalítico da totalidade num universo marcado por uma cosmologia brutalmente individualista.
Mal o professor pronunciou essas palavras e logo um aluno levantou a mão e perguntou: mas isso é mito ou realidade? Afinal, não estamos mesmo chegando ao final de um estilo de vida egoísta no qual pensamos cada qual em nós mesmos e todos apenas no nosso país?
Roberto Da Matta é antropólogo
O Globo
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