Minha cara,
Eu te criei porque o mundo estava meio vazio, e o homem, solitário. O Paraíso
era perfeito e, portanto, sem futuro. As árvores, ninguém para criticá-las; os
jardins, ninguém para modificá-los; as cobras, ninguém para ouvi-las. Foi por
isso que eu te fiz.
Ele nem percebeu e custará os séculos para percebê-lo. É lento, o homenzinho.
Mas, hás de compreender, foi a primeira criatura humana que fiz em toda a minha
vida. Tive que usar argila, material precário, embora maleável. Já em ti usei a
cartilagem de Adão, matéria mais difícil de trabalhar, mais teimosa, porém mais
nobre.
Caprichei em tuas cordas vocais, poderás falar mais, e mais suavemente. Teu
corpo é mais bem acabado, mais liso, mais redondo, mais móvel, e nele coloquei
alguns detalhes que, penso, vão fazer muito sucesso pelos tempos a fora.
Olha Adão enquanto dorme; é teu. Ele pensará que és dele. Tu o dominarás
sempre. Como escrava, como mãe, como mulher, concubina, vizinha, mulher do
vizinho. Os deuses, meus descendentes; os profetas, meus public-relations, os
legisladores, meus advogados; proibir-te-ão como luxúria, como adultério, como
crime, e até como atentado ao pudor!
Mas eles próprios não resistirão e chorarão como santos depois de pecarem
contigo; como hereges, depois de, nos teus braços, negarem as próprias crenças;
como traidores, depois de modificarem a Lei para servir-te. E tu, só de meneios,
viverás.
Nasces sábia, na certeza de todos os teus recursos, enquanto o Homem, rude e
primário, terá que se esforçar a vida inteira para adquirir um pouco de bens que
depositará humildemente no teu leito.
Vai! Quando perguntei a ele se queria uma Mulher, e lhe expliquei que era um
prazer acima de todos os outros, ele perguntou se era um banho de rio ainda
melhor. Eu ri. O homem é um simplório. Ou um cínico. Ainda não o entendi bem, eu
que o fiz, imagina agora os seus semelhantes.
Olha, ele acorda. Vai. Dá-me um beijo e vai. Hmmmm, eu não pensava
que fosse tão bom. Hmmmm, ótimol Vai, vai! Não é a mim que você deve
tentar, menina! Vai, ele acorda. Vem vindo para cá. Olha a cara de espanto que
faz. Sorri! Ah, eu vou me divertir muito nestes próximos séculos!
Millôr Fernandes.
Texto extraído do livro "Esta é a verdadeira história do Paraíso", Livraria Francisco Alves Editora - Rio de Janeiro, 1972.
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