terça-feira, 18 de setembro de 2012

Democracia e dissenso no Supremo

Nasce um sentimento, inclusive entre as classes mais baixas, de abandono da visão conformista sobre a corrupção. Termos como "peculato" chegaram ao povo
O julgamento do mensalão é uma experiência inédita de toma de consciência nacional quanto à própria legitimidade da nossa vida pública.
Os primeiros louvores ao Supremo teriam nascido do clássico moralismo das classes médias, e de sua boa consciência, em que a luta contra a corrupção termina a serviço do "status quo".
Entretanto, à proporção que avança o julgamento, se registra o avanço do apoio das baixas classes C e D, em contrário, do seu suposto desinteresse, no começo do julgamento da Corte.
Tornou-se avassaladora a popularidade de Joaquim Barbosa, a contrastar com a violência da reação a Lewandovski, no primeiro voto contrário à condenação de João Paulo Cunha.
O ministro Marco Aurélio nos lembraria, em frase-chave, de como a democracia profunda repele as unanimidades das cortes supremas, mostrando a importância dos dissensos para garantir a exaustão do contraditório judiciário.
Repetiu-o Cesar Peluso, ao mostrar que nenhum juiz se pode eximir da passagem das certezas às convicções, na implicação moral limite do ato de julgar, "sem ódio".
O debate, a partir da intervenção de Lewandovski, insistiu, ao mesmo tempo, na tecnicalidade das sentenças, a reforçar a credibilidade oriunda da prova dos autos, frente à repetição dos depoimentos confessionais.
Na maré das críticas, o que emerge é uma indignação nascida do que já passou em julgado pela opinião pública, a acusar-se o revisor de julgamento com dois pesos e duas medidas, de subserviência aos interesses do Planalto.
Há algo de irreversível nesta tomada de consciência, marcada por uma primeira convicção de que prevalece a lei sobre o dinheiro no jogo dos nossos poderes. O crescendo desse sentimento, nos dias atuais, nasce das classes populares como uma surpresa e do abandono de uma visão cínica, e, até há pouco, conformada com a corrupção endêmica.
A precisão da denúncia do procurador-geral ganhou uma narrativa envolvente dos crimes arrolados, e da figuração múltipla de seus protagonistas. É inédita, também, a cobertura contínua do espaço midiático, na didática ampla das espécies de infringência da lei, permitindo o surgimento de uma gramática do ilícito, das lavagens de dinheiro ao peculato, termos, hoje, todos na boca do povo.
O fatiamento das decisões, por outro lado, não levou ao anticlímax, tanto quanto não reduziu o clamor pela guilhotina contra os réus do mensalão.
Ganhamos, lá fora, hoje, a admiração pelo avanço do nosso regime democrático. E o atual voto do STF desarma o espectro da ditadura da convicção coletiva sobre a busca penosa da verdade desnudada.
Os votos caminharam por múltiplos afluentes, em todo o contrário de apoios sumários à procuradoria-geral ou à relatoria, na segurança das convicções emprestadas aos vereditos. Ultrapassam os moralismos fáceis, as tecnicalidades de circunstância, e as metodologias dos subterfúgios, num julgamento exemplar na consolidação do nosso Estado de Direito.

CÂNDIDO MENDES, 84, é membro do Conselho das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações, membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
 
Folha de São Paulo

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