Nasce um sentimento, inclusive entre as classes
mais baixas, de abandono da visão conformista sobre a corrupção. Termos como
"peculato" chegaram ao povo
O julgamento do mensalão é uma experiência
inédita de toma de consciência nacional quanto à própria legitimidade da nossa
vida pública.
Os primeiros louvores ao Supremo teriam nascido
do clássico moralismo das classes médias, e de sua boa consciência, em que a
luta contra a corrupção termina a serviço do "status quo".
Entretanto, à proporção que avança o
julgamento, se registra o avanço do apoio das baixas classes C e D, em
contrário, do seu suposto desinteresse, no começo do julgamento da Corte.
Tornou-se avassaladora a popularidade de
Joaquim Barbosa, a contrastar com a violência da reação a Lewandovski, no
primeiro voto contrário à condenação de João Paulo Cunha.
O ministro Marco Aurélio nos lembraria, em
frase-chave, de como a democracia profunda repele as unanimidades das cortes
supremas, mostrando a importância dos dissensos para garantir a exaustão do
contraditório judiciário.
Repetiu-o Cesar Peluso, ao mostrar que nenhum
juiz se pode eximir da passagem das certezas às convicções, na implicação moral
limite do ato de julgar, "sem ódio".
O debate, a partir da intervenção de
Lewandovski, insistiu, ao mesmo tempo, na tecnicalidade das sentenças, a
reforçar a credibilidade oriunda da prova dos autos, frente à repetição dos
depoimentos confessionais.
Na maré das críticas, o que emerge é uma
indignação nascida do que já passou em julgado pela opinião pública, a acusar-se
o revisor de julgamento com dois pesos e duas medidas, de subserviência aos
interesses do Planalto.
Há algo de irreversível nesta tomada de
consciência, marcada por uma primeira convicção de que prevalece a lei sobre o
dinheiro no jogo dos nossos poderes. O crescendo desse sentimento, nos dias
atuais, nasce das classes populares como uma surpresa e do abandono de uma visão
cínica, e, até há pouco, conformada com a corrupção endêmica.
A precisão da denúncia do procurador-geral
ganhou uma narrativa envolvente dos crimes arrolados, e da figuração múltipla de
seus protagonistas. É inédita, também, a cobertura contínua do espaço midiático,
na didática ampla das espécies de infringência da lei, permitindo o surgimento
de uma gramática do ilícito, das lavagens de dinheiro ao peculato, termos, hoje,
todos na boca do povo.
O fatiamento das decisões, por outro lado, não
levou ao anticlímax, tanto quanto não reduziu o clamor pela guilhotina contra os
réus do mensalão.
Ganhamos, lá fora, hoje, a admiração pelo
avanço do nosso regime democrático. E o atual voto do STF desarma o espectro da
ditadura da convicção coletiva sobre a busca penosa da verdade desnudada.
Os votos caminharam por múltiplos afluentes, em
todo o contrário de apoios sumários à procuradoria-geral ou à relatoria, na
segurança das convicções emprestadas aos vereditos. Ultrapassam os moralismos
fáceis, as tecnicalidades de circunstância, e as metodologias dos subterfúgios,
num julgamento exemplar na consolidação do nosso Estado de Direito.
CÂNDIDO MENDES, 84,
é membro do Conselho das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações, membro
da Academia Brasileira de Letras e da Comissão Brasileira de Justiça e
Paz.
Folha de São Paulo
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