segunda-feira, 14 de maio de 2012

De hemorroidas a tendinite

Depois de passar outra tarde inteira estudando e escrevendo num banco duro da Biblioteca Britânica, Karl Marx teria dito que um dia a burguesia ainda lamentaria as suas hemorroidas.

Marx foi o melhor exemplo da sua própria exortação aos filósofos, a de que era preciso mudar o mundo em vez de apenas entendê-lo, e teria mais razão do que a maioria dos intelectuais para achar que seu trabalho tinha consequência, ou que suas hemorroidas não tinham sido em vão.

Outro intelectual do século dezenove, Sigmund Freud, também poderia reivindicar a mesma pertinência para o seu trabalho duro, e a mesma influência na história humana, mas enquanto hoje ainda se ouvem alguns lamentos pelas hemorroidas do Marx — ou pelo menos se discute se o mundo teria sido o mesmo com ou sem ele, ou com ou sem elas —, a relevância histórica de Freud é pouca.

Antes que freudianos me mordam explico que a importância de Freud, como pioneiro e teórico, ainda é imensa e que suas teses e terapias, mesmo as que hoje estão ultrapassadas, afetaram a história pessoal de muita gente.

Mas a História com maiúscula, a história da humanidade como case de neurose coletiva, não tomou conhecimento da inversão freudiana da exortação marxista, a de que era preciso reinterpretar o mundo para poder entendê-lo, e mudá-lo.

Nenhuma das descobertas de Freud sobre o inconsciente e o comportamento neurótico, sobre o homem movido por impulsos que mal conhece, teve o mesmo impacto da ideia marxista do homem econômico, entregue a leis históricas que mal domina.

Nem impacto social nem intelectual, pois fora algumas tentativas de juntar Marx e Freud numa explicação só — num pobre homem atacado por fora pelo determinismo econômico e por dentro por ele mesmo — e uma ou outra iniciativa de interpretar a história psicanaliticamente, como fez Norman O. Brown num livro hoje esquecido, a investigação da humanidade como candidata a um divã não prosperou.

Que eu saiba. E basta olhar em volta para ver quanta coisa Freud ao menos explicaria, mesmo que não mudasse.

Quanto às hemorroidas citadas por Marx, são um símbolo da pretensão de todos nós a fazer alguma diferença com o que escrevemos. É insuportável saber que o único efeito de passar tanto tempo neste computador no mundo real seja uma possível tendinite.


Luis Fernando Veríssimo Do Blog do Noblat

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