Nossa experiência cultural é tão marcada pela escrita e pelo visual que esquecemos muitas vezes que somos seres sonoros e, sobretudo, que somos orais. Ouvimos e somos ouvidos fazendo parte de uma paisagem sonora. Mais além, falamos e esse é o fato político fundamental.
Do esquecimento da voz resulta a incapacidade política de uns e a violência discursiva de outros. Voz é justamente o universo político construído pela partilha da coisa falada. Não é a voz que está em nós, somos nós que estamos nela. E é por meio dela que, em primeiro lugar, fundamos a democracia.
A partilha da voz não é abstrata. É a partilha de um corpo que a todos pertence e, por isso mesmo não pertence a ninguém. Da voz, o que é dito, se torna domínio público. O que eu digo se estende para além de mim, é meu corpo tornado corpo do mundo. A voz do povo é a voz de Deus, equivale a dizer que o dizer profano se torna sagrado, está para além de nosso domínio pessoal, não tem mais dono. Qualquer um terá direito a seu uso. Por isso, em nossa cultura impera a parcimônia em dizer “verdades”, impera o silêncio quando se exigiriam posicionamentos.
Devido à desatenção que caracteriza nosso modo de ser banalizamos o fato importantíssimo da vida que é a nossa capacidade de falar uns aos outros, uns com os outros. Esquecemos por incrível que pareça que para falar precisamos da voz. Deixamos de lado sua materialidade para lembrar dela apenas quando a voz de uma cantora ou cantor nos cativa ou quando alguém nos fala em tom desagradável. Sentimos que a voz é veículo da linguagem e que está sempre carregada de significado como um corpo que, prostrado ou ativo está triste ou alegre.
A voz é corpo. Mas quem percebe isso? Quando falamos ou ouvimos a voz de alguém é como se o tocássemos ou fossemos tocados por ele. A voz é corpo e, por isso, mais que audível, ela é tátil. Por isso, a sensação de bom ou mau afeto, de amor ou violência que vem do conteúdo e da forma com que nos comunicamos uns com os outros. Isso é o que significa performance: um movimento, um tempo, que implica um efeito.
Seres falantes
A voz é uma dimensão da vida corporal, da vida sensível, da vida dos sons, não deve, portanto, ser vista como uma abstração imaterial e desconexa dos atos e gestos mais simples de nosso cotidiano. Mas pensar que ela é material e imaterial, parece ser o modo mais coerente de captar o seu conceito. Voz é corpo-espírito, é natureza-cultura.
Aristóteles (384-322 a.C) disse que a voz mostrava o que estava escrito na alma, assim como a escrita era signo da voz. A voz mesma não era signo de coisa alguma, antes um lugar que se representava a si mesmo. O fato por onde começava a comunicação, a mera indicação e a significação das coisas. Mas a voz era um meio, não um fim. Como tal, ela significa o trânsito por meio do qual se chega ao outro. Uma espécie de ponte que se constrói ao andar sobre ela.
A dimensão de falante é constitutiva do ser humano. A capacidade de conhecer que fundará mais tarde a ciência, a capacidade de relacionar-se que funda a ética e a política, são efeitos e potências da voz como articulador de toda a existência humana. A voz está na raiz da relação entre corpos individuais e instituições, desejos e leis, saberes pessoais e coletivos. A voz é a nossa articulação com o mundo.
Quintiliano, pensador antigo famoso por sua obra sobre retórica, via a voz era expressão dos afetos, como parte da ação. Nada passiva, a voz era parte da capacidade de agir de cada um, mas também a potencialidade de agir sobre um outro, de causar afetos. Voz era aquilo que constitui seu caráter performativo, ou seja, que provoca no outro uma reação, seja ela de mudança, seja de permanência. Se lembrarmos da poesia, isto se torna ainda mais claro já que ela foi a primeira forma da consciência da voz humana e que surgiu da potencialidade do afeto e da emoção que se traduziam no corpo da voz.
A poesia tem uma essência oral antes de ser coisa escrita, ela foi criada para ser ouvida. A escrita veio bem depois. Os antigos achavam que a voz tinha plena relação com a poesia não apenas porque a poesia precisava da voz para se expressar, mas porque ambas eram misteriosas. Santo Agostinho, na Idade Média, não deixou de expressar isso quando pensou que a voz era a própria vontade de saber. E para ele esta vontade de saber se traduzia como amor. A voz de uma palavra desconhecida não causava pavor ou rejeição, mas remetia ao que se podia conhecer. A voz era parte da filosofia, estava no cerne do modo como alguém pode conhecer.
Noutra linha, Hegel (1770-1871) assim como Heidegger (1889-1976) relacionou a capacidade de falar própria ao ser humano com sua consciência sobre a morte. Morte que não era apenas o cessar de viver dos corpos vivos, mas um saber sobre o tempo e a finitude da vida que mudava a relação com a vida enquanto podia ser vivida. A condição humana diferente dos outros animais vivos era a sua separação da natureza por meio da linguagem. Sendo que a voz e a morte eram fatos da linguagem. A primeira levava à linguagem e a linguagem levava a um saber sobre a morte. Tratava-se de instâncias misteriosas para o ser humano, que estavam ligadas entre si por meio da linguagem.
Violência e Voz
Podemos cantar, chorar, falar, dialogar, discursar, gritar ou nada mais que tagarelar. Mesmo quando falamos sem sentido, alguém pode, ainda que não queira, nos ouvir. Até o louco diz o que pensa, embora nem todos possam entender ou tenham paciência para escutar a voz sem política do louco. Ela parece sem política porque parece sem sentido. Acontece que, mesmo com garantias de sanidade, qualquer um que não tenha nada a dizer acaba sempre se expressando por meio de sua voz. E isto pode ser grave. Por isso, é bom pensar antes de falar porque a voz vai além de nós e depois que foi, não tem volta. Não é fácil apagar o que se diz se o ouvinte está atento, ou seja, se ele foi tocado. Assim como não é possível rebobinar a vida e voltar atrás no gesto de agressão que se emite por meio de palavras. A voz implica um corpo e o corpo implica ação. Daí que falar seja fazer e o feito possa ser tanto poder quanto violência.
Prestar atenção no que se diz é tão importante quando no que se ouve. Nossa sociedade tão tagarela quanto auditivamente desatenta nos ajuda a esquecer que somos seres falantes. Ou seja, que produzimos efeitos sobre o outro pelo simples fato de falarmos. Talvez a memória de que nosso amor e nosso ódio trafegam com as palavras que lançamos ao vento por aí possa melhorar o rumo de nossas vidas.
Márcia Tiburi
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