É difícil acreditar nisto. Se tiver irmãos, não podem estar na cidade, devem ter sido todos arrasados pela grande epidemia da meningite; não acredito que as relações fraternais não me tivessem deixado marcas e não há dúvida que não há sequer o mais leve vestígio. Em contrapartida, a única marca que me foi deixada resulta das minhas relações com o deserto, a solidão, o nada. Também não acredito que alguma vez me tenham contado a história de Noé, sentada, num círculo, com outras crianças. A minha aprendizagem tem em si o cheiro da tinta de impressora e não a ressonância de uma voz humana contando histórias. Mas talvez a nossa professora não fosse uma boa professora, talvez passasse os dias sentada à secretária, apática, batendo com a cana na mão, a ruminar insultos, a pensar no dia em que iria dali para fora, enquanto os alunos liam, penosamente, o livro de leitura, numa atmosfera em que nem sequer se ouvia uma mosca. De outra maneira, como é que se explica que eu tenha aprendido a ler, para já não falar em escrever?
[J. M. Coetzee, No Coração Desta Terra; trad. Maria João Delgado, cortesia da revista “Sábado”, 3€]
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