sábado, 31 de março de 2012

A cidade das palavras

"A 12 de Setembro de 1918, Franz Kafka, de trinta e cinco anos, padecente há muito da tuberculose que acabaria por condená-lo, recusou-se a dar entrada no sanatório ao qual os médicos o queriam confinar e, em vez disso, partiu para a aldeia de Zürau, onde vivia a sua irmã Ottla. Um mês após a sua chegada, recomeçou a escrever: não contos nem um novo romance, mas reflexões, fragmentos de pensamentos e aforismos que seriam publicados em 1931, sete anos volvidos sobre a sua morte, pelo seu amigo Max Brod, sob o título Meditações sobre o Pecado, o Sofrimento e a Esperança. Entre esses fragmentos, dois em particular parecem complementar-se e quase contradizer-se. O primero, com o número 18, afirma: “Se tivesse sido possível construir a Torre de Babel sem a subir, ela teria sido permitida.” O segundo é o número 48: “Acreditar no progresso não significa acreditar no progresso já feito. Isso não seria crença.” O primeiro aforismo parece considerar que não foi a construção da Torre de Babel que desencadeou a ira divina, mas o desejo de atingir logo o Céu, no presente dos construtores; este desejo (uma forma de crença, sugere o segundo aforismo) está condenado a ser enunciado no tempo futuro. Nas palavras de Kafka, para ser eficaz, a linguagem em que enunciamos as nossas crenças tem de nos levar em frente, na direcção de algo ainda não realizado."


[Alberto Manguel, A Cidade das Palavras; trad. Maria de Fátima Carmo, Gradiva, Junho 2011]

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