segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A difícil busca da autorrealização

Hoje vigora vastamente uma erosão de valores éticos que normalmente eram vividos e transmitidos pela família e depois pela escola pela sociedade. Essa erosão fez com que as estrelas-guia do céu da ética ficassem encobertas por nuvens de interesses danosos para a sociedade e para o futuro da vida e do equilíbrio da Terra.

Não obstante esta obscuridade importa reconhecer também a emergência de novos valores ligados à solidariedade internacional, ao cuidado para com a natureza, à transparência nas relações sociais e à rejeição de formas de violência política repressiva e da transgressão dos direitos humanos.

Mas nem por isso diminuiu a crise de valores, especialmente no campo da economia de mercado e das finanças especulativas que são as instâncias que definem os rumos do mundo e o dia-a-dia dos assalariados, vivendo sob permanente ameaça de desemprego.

As crises recentes denunciaram máfias de especuladores instalados nas bolsas e nos grandes bancos cujo volume de rapinagem de dinheiros alheios quase levou à derrocada todo o sistema financeiro mundial.

Ao invés de estarem na cadeia, depois de pequenos rearranjos, tais velhacos voltaram ao antigo vício da especulação e do jogo de apropriação indébita dos “commons”, dos bens comuns da humanidade (água, sementes, solos, energia, etc.).

Esta atmosfera de anomia e de vale-tudo que se espraia também na política, faz com que o sentido ético fique embotado e as pessoas diante da geral corrupção se sintam impotentes e condenadas à amargura ácida e à resignação humilhante.

Neste contexto muitos buscam sentido na literatura de autoajuda, feita de cacos de psicologia, de sabedoria oriental, de espiritualidade com receitas para a felicidade completa, ilusória, porque não se sustenta nem se apoia num sentido realista e contraditório da realidade.

Outros procuram psicólogos e psicanalistas que recebem dicas melhor fundadas. Mas no fundo, tudo termina com os seguintes conselhos: “dada a falência das instâncias criadoras de sentido como as religiões e as filosofias, devido à confusão de visões de mundo, da relativização de valores e do vazio de sentido existencial, procure você mesmo seu caminho, trabalhe seu Eu profundo, estabeleça você mesmo referências éticas que orientam sua vida e busque sua autorrealização.

“Autorrealização”: eis uma palavra mágica, carregada de promessas.

Não serei eu que vá combater a “autorrealização” depois de escrever "A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana” (Vozes 1999), livro que estimula as pessoas a encontrarem em si mesmas as razões de uma auto-realização sensata.

Esta resulta da sábia combinação da dimensão de águia e de galinha. Quando devo ser galinha, quer dizer, concreto, atento aos desafios do cotidiano e quando devo ser águia que busca voar alto para, em liberdade, realizar potencialidades escondidas. Ao articular tais dimensões, cria-se a possibilidade de uma autorrealização bem sucedida.

Penso que esta autorrealização só se consegue se incorporar seriamente três outras dimensões. A primeira é a dimensão de sombra. Cada um possui seu lado autocentrado, arrogante e outras limitações que não nos enobrecem. Esta dimensão não é defeito mas marca de nossa condição humana, feita da união dos contrários.
Acolher tal sombra, cuidar que seus efeitos maléficos não atinjam os outros, nos faz humildes, compreensivos das sombras alheias e nos permite uma experiência humana mais completa e integrada.

A segunda dimensão é a relação com os outros, aberta, sincera e feita de trocas enriquecedoras. Somos seres de relação. Não há nenhuma autorrealização cortando os laços com os demais.

A terceira dimensão é alimentar certo nível de espiritualidade. Com isso não quero dizer que a pessoa deva se inscrever em alguma confissão religiosa. Pode até ocorrer mas não é imprescindível. O importante é abrir-se ao capital humano/espiritual que, ao contrário do capital material, é ilimitado e feito de valores como a verdade, a justiça, a solidariedade e o amor.

É nesta dimensão que emerge a questão impostergável: que sentido tem, afinal, minha vida e o inteiro universo? Que posso esperar? A volta ao pó cósmico ou ao abrigo num Útero divino que me acolhe assim como sou?

Se esta última for a resposta, a autorrealização traz profundidade e uma felicidade íntima que ninguém pode tirar.



Leonardo Boff é teólogo e filósofo.

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