A filosofia está na moda, mas os filósofos ainda não se deram conta. Talvez nunca percebam. O que é, por um lado, muito bom, pois o trabalho do filósofo não é produzir modismos. Uma filosofia da moda, ajustadinha, na linha, bem comportada, prêt-à-porter, seria o fim da filosofia, ou seja, do pensamento crítico que ela deve ser. Os modismos passam e dão lugar a outros. E a filosofia - pensam tanto os mais conservadores como os muito críticos - não combina com movimentos efêmeros de cultura de massas. A filosofia não é auto-ajuda, cuidam de avisar uns, a filosofia não é enfeite nem eruditismo vazio, admoestam outros.
Mas que a filosofia esteja na moda é um fenômeno incomum que precisa ser analisado. Num tempo em que tudo vira mercadoria, terá sido a filosofia também apropriada pelo mercado? Como poderia justamente a filosofia cair num tal poço sem fundo, ela que para muitos representa ainda a última esperança em compreender a história, a existência, a humanidade? A básica pergunta filosófica “por quê?” se apresenta com força. O que para vários é apenas um surto, para outros é uma nova fase.
O que a sociedade e os meios de comunicação de massa percebem na filosofia? Essa é a pergunta que imediatamente fazemos diante desse interesse, pois a filosofia nunca foi algo que chamasse tanto a atenção - pelo menos em nosso contexto - da sociedade. Era normalmente considerada algo anacrônico, esquisito, coisa para desocupados ou loucos, ou algo inútil e cafona. Aos poucos, as pessoas, grupos, poderes, instituições vão se dando conta de que há coisas demais inúteis, cafonas, anacrônicas e que estas supostas características da filosofia não são raridades no cenário geral. Teriam mudado de opinião por perceberem que a filosofia era algo comum ao lado de tudo o que existe? Ou teriam percebido que a filosofia podia ser outra coisa? O que ela podia ser?
Estas adjetivações depreciativas sempre colocaram os ocupados com ela, fossem filósofos, professores ou estudantes de filosofia, na obrigação de justificá-la. A justificação parecia um pedido de desculpas que os filósofos pediam ao mundo. Seria um perdão necessário desde que Marx no século XIX em sua 11ª Tese sobre Feuerbach criticava que a filosofia, que até então tinha apenas interpretado o mundo, devia na verdade transformá-lo e, tendo descumprido a promessa, colocava os filósofos na posição de mentirosos ou impotentes? Ou um perdão ainda mais antigo, o que se criou com a promessa iluminista do século XVIII de livrar o ser humano da ignorância, do obscurantismo - e as ações violentas, a barbárie, que dele resulta - e tendo também descumprido o prometido, tornava a filosofia um assunto de eremitas egocêntricos?
A filosofia não cumpriu suas promessas e os filósofos ficaram com uma eterna culpa de se envolverem com algo tão bonito e instigante quanto o trabalho conceitual dentro de um mundo repleto de injustiças e infelicidade sobre o qual eles - os donos da verdade ou os que dela teriam a maior chance de se aproximar - sentiam-se responsabilizados eticamente. Cioran, o pessimista romeno (que na verdade foi um grande irônico), dizia que as pessoas odiavam a filosofia porque, na verdade, tinham remorsos por não serem filósofos.
Se todos fossem filósofos não precisaríamos de filosofia nas universidades, guetos onde ela sobreviveu a tiranias, ditaduras e a preguiça geral de pensar - esta, por sua vez, apenas sobrevive porque se pensamos (filosoficamente) somos obrigados a agir... Se a sociedade estivesse cheia de filosofia, a vida estaria plena de reflexão e busca da verdade e a ética teria chances maiores de instaurar-se em nossas ações. A vida seria organizada em torno de um ideal do bem sempre prometido desde que os gregos começaram com a atividade de pensar em conjunto a que ainda chamamos filosofia, o que em Pitágoras era uma festa e em Platão um diálogo. Os gregos que a inventaram queriam ser felizes e esperavam que a filosofia fosse essa providência. A filosofia reaparece em nosso cenário como mensageira de uma esperança nova.
A esperança que vem da liberdade do pensar. Nas academias brasileiras, todavia, a filosofia não foi nem festa nem diálogo, mas uma paradoxal proibição de pensar. No Brasil, desde a crença obscurantista - e absurda para uma filosofia verdadeira - de que filosofia é história da filosofia, a filosofia aberta ao público pode incomodar a alguns. Entrar para a academia (e receber seus títulos honoríficos) sempre foi o equivalente de se estar num clube seleto, certamente apartado do povo, não democrático. As academias brasileiras foram tanto o lugar onde a filosofia foi conservada (mesmo que como uma compota importada da Europa) - não há como negar - quanto o lugar onde ela foi tratada como um cadáver a ser dissecado. Mas o pensamento é como um animal selvagem que deseja sobreviver e escapou de sua jaula.
Terá sido apenas a sociedade a mudar de rumo e interesses? Não se modificou também a filosofia diante de sua própria história? E neste ponto a pergunta que devemos colocar é: o que pode a filosofia em relação à sociedade, ao mundo, à vida, aos meios de comunicação, aos poderes instaurados?A filosofia vem perturbar o senso comum. Estará o próprio senso comum incomodado consigo? O que mais ela vem perturbar?
Se fala hoje de Filosofia Pop. Como é sempre muito difícil encontrar um problema filosófico novo, alguém já falou nisso. E foi Deleuze, um francês que rompeu radicalmente com a filosofia tradicional, a ponto de que mentes mais conservadoras nem o consideram “filósofo”, quem cunhou a expressão. Mas como bom filósofo - nem um pouco interessado no titulo honorífico de filósofo - não caiu na invenção da moda, apenas olhou desconfiado para o fenômeno. Mas qual o lado bom de uma filosofia pop, uma filosofia para todos, que envolva todos, que seja acessível aos não especializados sem tornar-se facilitação rasa e auto-ajuda?
A resposta está em uma filosofia que possa operar dialeticamente, nos limites, onde se a considera impossível, no coletivo, nas margens. Não uma mistificação do pensamento para o público, mas uma provocação por meio de um questionamento dos ícones como fora a Pop Art nos anos 60. A arte, aliás, sempre está à frente da filosofia como algo que pode nos mostrar a verdade (esta e simplesmente o “mais” que nem sempre podemos ver), por isso é mal compreendida. E a filosofia se torna útil num mundo onde “compreender” qualquer coisa - a arte, a vida - se tornou muito difícil. Ora, pensar? Todos pensam, mas isso na significa que pensamos do modo mais radical. Fazer filosofia é “pensar mais”.
A Filosofia Pop, essa espécie de movimento que cresce no mundo e no Brasil, não deve, portanto, ser confundida com a mera popularização da filosofia, coisa que livros tais como O mundo de Sofia de Jostein Gaardner muito providenciou. A boa filosofia pop é uma filosofia de combate, de ruptura. É preciso salvar a filosofia de ser mera mercadoria e também de ser mera “aventura” como defensores não tão atentos da filosofia pop podem tentar mostrar. A tarefa do filósofo e da filosofia, embora divertida e instigante, é séria, como é séria a vida. Pensar requer responsabilizar-se sobre o que se diz porque se pensa.
O filósofo escapou da academia e terá de tocar na vida comum, na vida de todos com o seu precioso condão, o pensamento. A linguagem será o seu desafio. A tarefa do filósofo não deverá ser a de contar aos outros o que sabe, o que leu, mas ajudar a pensar, a construir o diálogo entre todos. Utopia? Sim, mas é a utopia que move a filosofia. Ela se torna um objetivo a realizar.
Pensar é uma ação, não apenas uma contemplação no vazio. E é um poder, o poder da transformação dos valores, das ações, dos sentidos. Pensar - num mundo em que o vazio do pensamento nos leva a banalizar as nossas condutas chegando ao mal como falou Hannah Arendt - é um dever, uma ação urgente e essencial que só se realiza e transforma a sociedade quando descobrimos o poder da filosofia como poder de pensar juntos.
Marcia Tiburi
* publicado originalmente no Caderno Cultura de Zero Hora em 06 de agosto de 2005.
Mas que a filosofia esteja na moda é um fenômeno incomum que precisa ser analisado. Num tempo em que tudo vira mercadoria, terá sido a filosofia também apropriada pelo mercado? Como poderia justamente a filosofia cair num tal poço sem fundo, ela que para muitos representa ainda a última esperança em compreender a história, a existência, a humanidade? A básica pergunta filosófica “por quê?” se apresenta com força. O que para vários é apenas um surto, para outros é uma nova fase.
O que a sociedade e os meios de comunicação de massa percebem na filosofia? Essa é a pergunta que imediatamente fazemos diante desse interesse, pois a filosofia nunca foi algo que chamasse tanto a atenção - pelo menos em nosso contexto - da sociedade. Era normalmente considerada algo anacrônico, esquisito, coisa para desocupados ou loucos, ou algo inútil e cafona. Aos poucos, as pessoas, grupos, poderes, instituições vão se dando conta de que há coisas demais inúteis, cafonas, anacrônicas e que estas supostas características da filosofia não são raridades no cenário geral. Teriam mudado de opinião por perceberem que a filosofia era algo comum ao lado de tudo o que existe? Ou teriam percebido que a filosofia podia ser outra coisa? O que ela podia ser?
Estas adjetivações depreciativas sempre colocaram os ocupados com ela, fossem filósofos, professores ou estudantes de filosofia, na obrigação de justificá-la. A justificação parecia um pedido de desculpas que os filósofos pediam ao mundo. Seria um perdão necessário desde que Marx no século XIX em sua 11ª Tese sobre Feuerbach criticava que a filosofia, que até então tinha apenas interpretado o mundo, devia na verdade transformá-lo e, tendo descumprido a promessa, colocava os filósofos na posição de mentirosos ou impotentes? Ou um perdão ainda mais antigo, o que se criou com a promessa iluminista do século XVIII de livrar o ser humano da ignorância, do obscurantismo - e as ações violentas, a barbárie, que dele resulta - e tendo também descumprido o prometido, tornava a filosofia um assunto de eremitas egocêntricos?
A filosofia não cumpriu suas promessas e os filósofos ficaram com uma eterna culpa de se envolverem com algo tão bonito e instigante quanto o trabalho conceitual dentro de um mundo repleto de injustiças e infelicidade sobre o qual eles - os donos da verdade ou os que dela teriam a maior chance de se aproximar - sentiam-se responsabilizados eticamente. Cioran, o pessimista romeno (que na verdade foi um grande irônico), dizia que as pessoas odiavam a filosofia porque, na verdade, tinham remorsos por não serem filósofos.
Se todos fossem filósofos não precisaríamos de filosofia nas universidades, guetos onde ela sobreviveu a tiranias, ditaduras e a preguiça geral de pensar - esta, por sua vez, apenas sobrevive porque se pensamos (filosoficamente) somos obrigados a agir... Se a sociedade estivesse cheia de filosofia, a vida estaria plena de reflexão e busca da verdade e a ética teria chances maiores de instaurar-se em nossas ações. A vida seria organizada em torno de um ideal do bem sempre prometido desde que os gregos começaram com a atividade de pensar em conjunto a que ainda chamamos filosofia, o que em Pitágoras era uma festa e em Platão um diálogo. Os gregos que a inventaram queriam ser felizes e esperavam que a filosofia fosse essa providência. A filosofia reaparece em nosso cenário como mensageira de uma esperança nova.
A esperança que vem da liberdade do pensar. Nas academias brasileiras, todavia, a filosofia não foi nem festa nem diálogo, mas uma paradoxal proibição de pensar. No Brasil, desde a crença obscurantista - e absurda para uma filosofia verdadeira - de que filosofia é história da filosofia, a filosofia aberta ao público pode incomodar a alguns. Entrar para a academia (e receber seus títulos honoríficos) sempre foi o equivalente de se estar num clube seleto, certamente apartado do povo, não democrático. As academias brasileiras foram tanto o lugar onde a filosofia foi conservada (mesmo que como uma compota importada da Europa) - não há como negar - quanto o lugar onde ela foi tratada como um cadáver a ser dissecado. Mas o pensamento é como um animal selvagem que deseja sobreviver e escapou de sua jaula.
Terá sido apenas a sociedade a mudar de rumo e interesses? Não se modificou também a filosofia diante de sua própria história? E neste ponto a pergunta que devemos colocar é: o que pode a filosofia em relação à sociedade, ao mundo, à vida, aos meios de comunicação, aos poderes instaurados?A filosofia vem perturbar o senso comum. Estará o próprio senso comum incomodado consigo? O que mais ela vem perturbar?
Se fala hoje de Filosofia Pop. Como é sempre muito difícil encontrar um problema filosófico novo, alguém já falou nisso. E foi Deleuze, um francês que rompeu radicalmente com a filosofia tradicional, a ponto de que mentes mais conservadoras nem o consideram “filósofo”, quem cunhou a expressão. Mas como bom filósofo - nem um pouco interessado no titulo honorífico de filósofo - não caiu na invenção da moda, apenas olhou desconfiado para o fenômeno. Mas qual o lado bom de uma filosofia pop, uma filosofia para todos, que envolva todos, que seja acessível aos não especializados sem tornar-se facilitação rasa e auto-ajuda?
A resposta está em uma filosofia que possa operar dialeticamente, nos limites, onde se a considera impossível, no coletivo, nas margens. Não uma mistificação do pensamento para o público, mas uma provocação por meio de um questionamento dos ícones como fora a Pop Art nos anos 60. A arte, aliás, sempre está à frente da filosofia como algo que pode nos mostrar a verdade (esta e simplesmente o “mais” que nem sempre podemos ver), por isso é mal compreendida. E a filosofia se torna útil num mundo onde “compreender” qualquer coisa - a arte, a vida - se tornou muito difícil. Ora, pensar? Todos pensam, mas isso na significa que pensamos do modo mais radical. Fazer filosofia é “pensar mais”.
A Filosofia Pop, essa espécie de movimento que cresce no mundo e no Brasil, não deve, portanto, ser confundida com a mera popularização da filosofia, coisa que livros tais como O mundo de Sofia de Jostein Gaardner muito providenciou. A boa filosofia pop é uma filosofia de combate, de ruptura. É preciso salvar a filosofia de ser mera mercadoria e também de ser mera “aventura” como defensores não tão atentos da filosofia pop podem tentar mostrar. A tarefa do filósofo e da filosofia, embora divertida e instigante, é séria, como é séria a vida. Pensar requer responsabilizar-se sobre o que se diz porque se pensa.
O filósofo escapou da academia e terá de tocar na vida comum, na vida de todos com o seu precioso condão, o pensamento. A linguagem será o seu desafio. A tarefa do filósofo não deverá ser a de contar aos outros o que sabe, o que leu, mas ajudar a pensar, a construir o diálogo entre todos. Utopia? Sim, mas é a utopia que move a filosofia. Ela se torna um objetivo a realizar.
Pensar é uma ação, não apenas uma contemplação no vazio. E é um poder, o poder da transformação dos valores, das ações, dos sentidos. Pensar - num mundo em que o vazio do pensamento nos leva a banalizar as nossas condutas chegando ao mal como falou Hannah Arendt - é um dever, uma ação urgente e essencial que só se realiza e transforma a sociedade quando descobrimos o poder da filosofia como poder de pensar juntos.
Marcia Tiburi
* publicado originalmente no Caderno Cultura de Zero Hora em 06 de agosto de 2005.
Um comentário:
Nesta época de massificação...não deixe que a televisão pense por você !...procure extrair de sí mesmo...das suas experiências vividas,... pensamentos para libertar a sí mesmos... e ao outros ! :)
Postar um comentário