domingo, 31 de outubro de 2010

O desejo do tempo

Os antigos gregos tinham em Chronos, deus do tempo, a imagem do pai todo poderoso devorador dos filhos. Ele criava, ele mesmo aniquilava. O tempo cronológico é apenas o tempo que passa. Mas a experiência do tempo não passa tão simplesmente, somos nós que passamos por ela. Nos constituímos, em nossa interioridade, a partir dela. Como dizia Santo Agostinho, o tempo é algo complexo demais, sendo muito difícil para cada um explicá-lo. Tanto quanto é fácil de entender, pois estamos nele desde sempre. O tempo nos possui e não o contrário.

Um dia de cada vez.

É melhor viver um dia de cada vez? É provável que ouçamos ou pronunciemos esta frase em vários momentos da vida. Quando incertezas e desesperanças se põem em cena é a reflexão sobre o tempo (seja ele dito na forma dos dias, das horas, do tempo ao tempo) que sustenta nossas ponderações. Ou na básica ansiedade que move o cotidiano, quando não compreendemos as próprias direções, quando, sem perspectiva ou foco, parece que não buscamos nada. Ansiosos quando queremos muito, nem sempre sabemos bem o que queremos. E nos angustiamos porque estamos no tempo, medido, e não na eternidade, desmedida. A vida exige solução, mas o tempo é o limite de toda vontade. Por isso, ele também é possibilidade.

A frase traz uma sabedoria básica na forma de um conselho sobre o uso e a compreensão do tempo, do qual depende o desejo, nome que se dá ao modo de nos relacionarmos ao futuro, o nosso e o que compomos junto de outros. A frase nos diz sobre um modo de tratar com a frustração comum na sociedade de hoje: a da ausência do desejo que diz respeito a uma incapacidade de criar projeto de vida. Ou seja, o que fazer da vida dentro de seu limite. “Um dia de cada vez” significa: “vá com calma, aproveite o tempo presente”, mas por outro lado, também diz “esqueça a totalidade da vida”. Aí conhecemos o conflito com a “temporalidade” sobre o qual vivemos cegos. Se pensarmos em termos de vantagens, talvez não seja frutífero ter em mente a vida inteira, o todo do que podemos fazer com o tempo que dispomos, pois não há certeza sobre o que virá. Porém, sem pensar no todo da vida, que é o tempo que temos para viver, talvez fique difícil orientar-se dentro dela. Sem sabermos do nosso tempo, estamos perdidos de nós mesmos, sem futuro. A dimensão do tempo é mais que psicológica e metafísica, ela é também prática. Põe-nos diante de nossa liberdade de decisão, define o destino, ou o tempo, que devemos construir.

A experiência do tempo pode ser uma experiência de angústia, de que algo desconhecido nos espreita. Só o desejo é a cura desta sensação de opacidade da vida. O desejo não é tormento, mas o caminho para sair dele. Ela não vem do nada. Nasce do tempo experimentado em seu limite, do fato de que há a consciência perturbadora da existência que é a morte. Enquanto esperamos seguimos a “viver um dia de cada vez”. No tempo que é sempre medida, a soma dos dias, compõe o sentido da vida, o valor da eternidade.

Os limites da experiência.

Assim como damos “limites” às crianças para que possam orientar seus desejos, seus quereres e poderes, nós, mesmo adultos, deveríamos nos reorientar no nosso limite com a vida, a que chamamos tempo. O tempo, todavia, não é a mera duração da vida. A duração é só o tempo do relógio, ela se parece mais com o espaço que percorrem os ponteiros no mostrador. Nosso modo de compreender o tempo é o que nos orienta na vida: o tempo do trabalho, o tempo do lazer, o tempo do conhecimento, do amor, o tempo interior, o tempo domesticado pela vida orientada e administrada que vivemos. O tempo é um radar que nos ensina aonde ir, nossas urgências, os caminhos que precisamos escolher diante da impossibilidade de seguir todos.

A frase sobre o dia a dia a ser vivido de um em um, nos serve de antídoto quando vivemos esta frustração tão específica que é a do tempo que não aprendemos a experimentar em seus dois pólos, o do todo fora de nós (a família, a sociedade, a história, o planeta) e o do que se elabora em nossa interioridade. De um lado, vivemos o nosso tempo pessoal, o tempo de cada individualidade, de cada um que experimenta seu corpo, seu sentimento, medos, anseios, possibilidades, e sua noção de morte. O tempo individual é sempre o tempo da insegurança. Buscamos os outros: filhos, maridos, amigos, trabalho, para participarmos do tempo coletivo onde, ao partilharmos a insegurança com as demais individualidades, a eliminamos. Para tudo isso é preciso sempre muita atenção sobre o que estamos vivendo.

A avareza do tempo.

Por outro lado, todos aqueles que sabem o valor do tempo, costumam pensá-lo em analogia com o dinheiro: tempo é dinheiro. Quem dispensa tempo, dispensa dinheiro ou, em termos mais técnicos, dispensa lucro. Mas o que é o lucro senão a vantagem que temos em relação aos outros, ao trabalho, à vida? O lucro é um “a mais”, mas a vida não vai nos dar mais tempo. Logo, tempo não é necessariamente dinheiro, mas justamente o que nos logra se a vida não foi bem vivida. Se o avaro economiza dinheiro, quem economizar tempo não poderá ser avarento, a rigor, o tempo é algo que sempre se multiplica. O tempo se multiplica na generosidade. É uma questão de organização. O desejo só surge como mensagem na garrafa àquele que entendeu a função de seu tempo próprio no tempo coletivo.


Marcia Tiburi


Publicado na Revista Vida Simples. Ed. 49. P. 56-57.

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