sábado, 12 de julho de 2014

Pensar a saúde nos dias de hoje

Saúde como questão política
 
Há quem diga que a Saúde no Brasil é um problema de saúde pública. Na brincadeira fica claro o fato de que tudo o que concerne ao campo da Saúde, é um problema eminentemente político. Isso significa dizer que se trata de um problema de poder. O âmbito do político refere-se ao que implica a todos, o que a todos concerne, sejam usuários ou profissionais do sistema em questão. Todos sabemos que vivemos em uma sociedade na qual inevitavelmente partilharemos, de um modo ou de outro, os efeitos funestos de nossas próprias atitudes, projetos e propostas. Não somos ingênuos, embora possa parecer.
 
A Saúde – assim como o Direito, a Religião ou a Educação – faz parte dos dispositivos do poder usados pelo sistema econômico e social para manter as coisas como elas estão. Sempre podemos nos perguntar se poderia ser diferente no que concerne a estes campos essenciais em nossas vidas concretas.
 
Neste contexto é que podemos sempre nos colocar uma pergunta política relativamente à saúde: que saúde temos e que saúde queremos? Acontece que esta pergunta não pode ser respondida livremente porque há limites em nossa compreensão da política. Esses limites são éticos. De modo que, então, precisamos nos colocar a questão ética ainda mais fundamental que a questão política para pensar sobre o caso da saúde no Brasil: “o que estamos fazendo uns com os outros?”
 
Sabemos que é a ética que funda a política e vice-versa. Podemos resumir a relação entre as duas dizendo que, enquanto a ética constrói a política por dentro, a política constrói a ética por fora. Isso quer dizer que uma depende da outra.
 
Saúde como questão ética
 
Tendemos a considerar que o problema da saúde está entre os sujeitos implicados em seus processos. Fala-se em “humanização da saúde” pondo em cena, de um lado, o embrutecimento e, de outro, a necessidade de sensibilização das pessoas, profissionais e familiares envolvidos com pacientes. De fato, é sempre melhor que as pessoas se tornem seres humanos respeitosos e, até mesmo, possam ser amorosos uns com os outros. Mas a amorosidade ou a competência para a caridade – o assistencialismo possível – não resolveria o problema da Saúde. Nem de nenhuma outra área. Se quisermos debater a questão do que vem sendo chamado de “Humanização da Saúde” teremos que fazê-lo em termos éticos e políticos, sem separar o ético do político, sem reduzir a questão à mera moralização adocicada que em nada mudará o cenário de nossas vidas.
 
Assim, quando falamos de ética não nos referimos simplesmente a um respeito com o próximo apenas no sentido da assistência que lhe devemos. Ética é uma palavra que vem de “ethos”, palavra que se traduz por casa, lar, lugar onde se vive. Daí que ética seja, em certo sentido, a ciência da convivência. Como ciência oriunda da filosofia ela não pode buscar nada que não seja verdadeiro. No que se refere à convivência, diremos que o máximo que dela alcançaremos é que seja boa e justa. A convivência implica o “com-portamento”, ou seja, o modo como alguém se porta em relação ao outro. Daí que a pergunta “o que fazemos uns com os outros?” seja fundamental à ética que é, em última instância, a nossa filosofia prática.
 
O que está por trás do descaso com a saúde?
 
Ora, o que se faz com a Saúde tem a ver com o que fazemos uns com os outros.
 
Precisamos, neste sentido, ver o que está em jogo no descaso atual com a Saúde. Certamente ele nasce de um descaso geral com o outro que é próprio de nossa cultura e da política profissional que dela faz parte. O tema do “outro” é muito importante em nossas vidas sobrecarregadas de narcisismo, egoísmo e toda a crença na identidade que erige as instituições voltadas apenas à sua própria auto-conservação.
 
A pergunta “o que estamos fazendo uns com os outros”? implica o complexo tema do “reconhecimento” em que o outro não pode ser tratado como um meio, como um objeto, como uma coisa. O reconhecimento só é possível, por sua vez, quando refletimos sobre nós mesmos, quando somos capazes de pensar naquilo que fazemos.
 
O outro sempre pode ser uma espécie de inferno. Mas é também o grande desafio, o desafio da diferença, sem a qual não nos constituímos nem como seres do conhecimento, muito menos como sujeitos éticos.
 
Perguntamos, neste contexto, sobre o descaso geral em relação à Saúde, por que, embora tudo o que se refira à ela pareça sempre, em primeiro lugar, questão de necessidade, trata-se também de uma questão de cultura que antecede as urgências da vida. Vivemos a cultura da desvalorização geral de todas as coisas que não tenham um valor imediatamente financeiro. Alguns dizem que vivemos no contexto da desvalorização da vida. Mas isso só tem sentido se pensarmos que ela está inserida na desvalorização da cultura, que inclui a desvalorização da educação, a desvalorização das pessoas de um modo geral. É a grande desvalorização da subjetividade, do direito de cada um a uma vida justa, boa, honesta. A desvalorização da própria ética e da própria política também pertencem a este quadro social geral. A desvalorização da Saúde enquanto prática, enquanto campo, é notória pela desvalorização dos médicos, das enfermeiras, dos pacientes, do próprio sistema que serve como dispositivo de aviltamento de todos os implicados. O clima de medo instaurado muitas vezes entre médicos e pacientes diz respeito à perda da dimensão do sentido de todos os envolvidos na profissão, eles mesmos desvalorizados como indivíduos e como sujeitos.
 
Podemos nos perguntar neste sentido sobre o estatuto da medicina como ciência humana e sobre o seu papel na formação de uma auto-compreensão da própria área da Saúde da qual ela é o núcleo exemplar. Em outros termos, o que médicos tem a nos dizer sobre sua prática em um contexto em que já não são chamados a pensar? Apesar dos incrementos técnicos, a medicina nunca foi apenas uma ciência tecnológica, ela sempre envolveu um conhecimento dos tratamentos em relação a condições orgânicas e corporais, bem como subjetivas de seus pacientes. A medicina sempre foi uma filosofia prática, e justamente por isso, uma ética.
 
Para seguir pensando nisso tudo, faz-se necessário um verdadeiro movimento de reflexão crítica, na direção de uma auto-compreensão que nos permita entender a conexão entre ética e política no campo da Saúde. Contribuiremos refletindo sobre o que vemos, sofremos e fazemos todos os dias enquanto ajudamos a abrir os olhos uns dos outros para que possamos ver melhor o mundo ao nosso redor. Quem sabe assim, possamos melhorá-lo.
 
 
Marcia Tiburi
Publicado originalmente aqui

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