Jamais hei de saber a imagem que os outros têm de mim. Eu me conheço dos espelhos, das fotografias dos reflexos, quando meus olhos param para se olhar e a diferença de ângulos impede criar uma dimensão real. Não sei os movimentos do meu rosto. Nunca me vi pela primeira vez. Tenho, de mim mesma, uma idéia preconcebida que alia o espírito aos traços fisionômicos e ao desejo de uma outra beleza. Criei, assim, uma pessoa invisível, mais real, para mim, do que qualquer outra. Dessa pessoal eu gosto. E, talvez por saber-me sua única amiga, ela me enternece profundidade.
Vejo um rosto oval, de maçãs altas, a linha fácil e cheia descendo até meu queixo redondo, com uma doçura infantil. Os olhos grandes, plantados com sabedoria, são verdes, compridos, muito separados; tôda vez que alguém busca em mim algo a elogiar, apega-se aos olhos, e ficou-me convencido que tenho olhos bonitos. Entre eles, ocupando mais espaço do que o estritamente necessário, meu nariz é elemento básico para manter viva a ilusão de que no dia em que resolver ficar bonita, será suficiente operá-lo. A bôca, desenhada em redondos, tem o lábio superior pequeno e o de baixo cheio; divide-se, nítida, em luz e sombra, e somente os cantos virados para baixo a diferenciam de minha bôca de menina.
Ao redor da cabeça pequena sinto o cabelo despenteado. Curto, desce em vírgulas sôbre a testa, diante das orelhas e na nuca, deixando livre o pescoço. Sempre tive a impressão de um pescoço gracioso e longo, impressão provàvelmente devida à magreza com que surge dos ombros, prêso por tendões fortes, como se fôsse um esfôrço erguer-se entre os omoplatas.
Vejo um corpo de garôto, os ossos largos e parente confirmando a boa estrutura. Nos meus braços, o sol desenha veias e músculos. As costas são mais estreitas do que deveriam. Os seios, promessa nunca concretizada. A cintura, pequena. Nos quadris e nas pernas, uma capacidade de fôrça não solicitada. As mãos prendem-se ao punho sem hesitação, a palma é larga, os dedos fortes. Os pés são de pedra.
Quando me olho nas vitrines, de soslaio, tenho a passo seguro. Ando rápida, um pouco por pressa, um pouco pelo prazer físico de sentir o corpo em ação, obediente e jovem. Gosto de andar, e o faço com cuidado, sentindo o balanço e o apoio, prestando atenção. Tenho muito amor a meus gestos.
Quase não pisco. Às vêzes, a intensidade com que olho, querendo ver, doi-me nas têmporas. Quando estou sozinha nunca sorrio, mas sorrio muito, com prazer e consciência, quando companhia.
Quisera ser mais frágil do que sou. E me orgulho de minha fôrça. Meu rosto é antigo. Ninguém mais moderno. Jovem, tenho tôda a minha velhice. A resistência me assusta. A liberdade me pesa. Não quero ser livre.
Gostaria de ser como os outros me vêm. Ou que os outros me vissem como sou. Haveria, assim, uma única pessoa.
Marina Colasanti
Crônica 1 do livro Eu Sozinha, lançado pela Record em 1968. Este foi o primeiro livro da autora.
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