O automóvel é para poucos um meio de transporte. Produto para a indústria e o
mercado, ele deve surgir como fetiche na consciência coisificada dos usuários. É
dessa coisificação que depende o sucesso das vendas e o aumento da produção. O
aumento da produção gera emprego, dirão uns, gera capital, dirão outros. Que o
carro seja central na economia política de uma sociedade marcada pelo descaso
com o transporte público explica a supremacia do privado, o poder do dinheiro em
detrimento da cidadania. O núcleo bárbaro de nosso estado social refere-se
também ao declínio do espaço público ocupado pelos carros em uma sociedade
motorizada quando já não há por onde seguir.
É evidente que o espaço social da rua, este espaço desvalorizado onde vivem
excluídos e marginalizados, moradores sem casa, se tornaria o lugar onde o
capitalista motorizado ostentaria seu poder automobilizado. O motorista realiza
a ideia de que a racionalidade técnica é a racionalidade da dominação por meio
de sua máquina impressionante. Andar a pé, uma prática totalmente
antitecnológica, tornou-se um perigo, cujo risco é deixado ao despossuído. A
posse é o espaço a ser percorrido. Os carros nas grandes cidades congestionadas
surgem como marcadores de lugar: quem pode mais ocupa mais espaço em relação a
quem pode menos. Assim é que a sociologia do trânsito de nossa época tem que se
ocupar não apenas com a divisão do espaço, mas com a tradicional avareza do
capitalismo aplicada ao movimento nas grandes cidades. Não se trata mais do
simples direito de cada um à cova medida; o movimento lento dos carros nas ruas
enfartadas lembra o funeral em que todos estão a caminho de um grande
enterro.
Fetiche automobilístico
O carro faz parte da mitologia cotidiana. Ayrton Senna foi o deus maior
sacrificado no ritual do automobilismo, ritual do qual participam as massas
encantadas com seus brinquedinhos mais baratos.
Mas para entender o fenômeno do fetiche automobilístico de nossos tempos
podemos pensar algo ainda mais elementar: quem compra um carro nunca compra
apenas um carro, compra a ideia vendida pela propaganda do carro. A ideia é
sempre a mesma, compra-se um poder. Com o poder na forma de um carro, o
motorista pode transitar pela rua.
Um carro permite a ostentação fundamental que se tornou meio de sobrevivência
em uma sociedade competitiva na qual, mesmo não sendo um vencedor, sempre se
pode parecer um. A ostentação é parte essencial do sistema simbólico em que o
reconhecimento deturpado diz quem somos e o que podemos ser dependendo do que
possuímos.
Do mesmo modo que o menino rico ganha um carro dos pais assim que aprende a
dirigir não porque o carro seja necessário, mas porque é sinônimo do tornar-se
adulto ou pelo menos do parecer adulto, o menino pobre que trabalha como
empacotador no supermercado economiza dinheiro para comprar um carro porque,
também ele, entende que é o carro que o torna alguém numa sociedade de pilotos.
Assim, ele não questiona seu trabalho escravizado, pois pode chegar ao fim da
corrida alcançando o bem desejado por todos os que, na qualidade de vencedores
ou vencidos, não se colocam a questão de parar a corrida.
Assim é que entendemos o caráter de máscara dos automóveis. A questão de ser
quem se é define-se no meio de transporte que se usa. Da bicicleta ao carro
blindado, do ônibus que sai da periferia à Ferrari, cada um é reduzido ao
transporte que usa. Quem não tem carro, pois ele está ao alcance de todos
independemente dos sacrifícios implicados em sua aquisição e manutenção, pratica
um ateísmo. O dono do carrão expõe, como um exibicionista expõe seu sexo, uma
verdade teológica.
Marcia Tiburi
Fonte e créditos: Revista Cult
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