"Qual é a verdade sobre o mundo, já que sou incapaz de me compreender a mim mesmo, eu, que vejo, sinto e entendo de mil maneiras diferentes! Tomem como exemplo uma mesa de trabalho, um simples objeto como a mesa onde costumo escrever! Quantas vezes me sentei diante dela ou a toquei, reconhecendo-a, com indiferença; no escuro, já me tenho aproximado dela, tateando; uma vez desenhei-a numa carta a um amigo, e aí ela correspondia a meia dúzia de traços de lápis; às vezes acontece que me chega o seu odor ao nariz, depois de um longo e árduo trabalho; outras vezes ainda olho-a, admirado, quando surge diante de mim livre de papelada que foi arrumada noutro sítio – uma outra mesa! E quanta coisa mais não se poderia dizer desta simples mesa maciça! Uma quantidade de lenha para aquecer, uma forma que lembra um determinado estilo, um peso como mercadoria a transportar, um preço quando foi comprada, outro preço que terá hoje, outro preço ainda depois da minha morte. Já sobre esta mesa não se vislumbra o fim da lista! Uma mosca vê-la-á de um modo diferente do de um periquito, e será que Gerda a viu alguma vez como eu a vejo? Não sei, só sei que ela conhece o sítio onde eu fiz um buraco no tampo, com o cigarro. Para ela trata-se da minha mesa, aquela que tem um buraco feito por uma queimadura; além disso, conhece ainda os seus pés torneados, porque nos seus retorcidos se deposita todo o pó possível e imaginário. Só me apercebi deste fato por seu intermédio, mas em compensação sei o que ela não sabe: a sensação de bem-estar que ela provoca quando nela apoiamos os dois cotovelos, e como um olhar pensativo se prende nos seus veios, e como sobre ela se dorme, pois que algumas vezes adormeci sobre o trabalho, com a cabeça caída para a frente, sobre o tampo."
[Ingeborg Bachmann, Trinta Anos; trad. Leonor Sá, Relógio d’Água, 1988]
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