Foto João Espinho
Existem uns amores que já morreram há muito tempo mas de vez em quando aparecem, como um assombração. Não, não falo de assombrações que voltam para seduzir, como a moça-fantasma de Belo Horizonte poetizada por Carlos Drummond de Andrade; ou voltam para apimentar uma vida que ficou insossa, como o Valdinho de Jorge amado faz com dona Flô. Não. Estas, diz o ditado, sabem para quem devem aparecer, ou seja: só aparecem com a ajuda daqueles para quem aparecem. Falo de outras, que fazem uma visita breve, uma aparição, e somem, de improviso, sem arrepiar ninguém.
Às vezes esses amores nem se mostram inteiros. Surge uma boca, um seio, uma pele, um andar, uma risada. Quando se presta atenção, a figura desaparece: era assombração. O fantasma antigo pode aparecer de repente no meio de uma leitura, ao escovarmos os dentes, e até na hora do amor. A gente pode estar conversando, discutindo um negócio, um filme, uma jogada, e se intromete aquele olhar. Pode estar dirigindo um carro e a mão que repousa hoje na nossa perna tem o mesmo peso de alguma do passado e aí vem o fantasma sem-que-fazer e puxa conversa.
Não é saudade, não é nada: é intromissão. A figura surge concreta, sensível, do mesmo modo como nos vem um gosto de doce de abacaxi ou uma chinelada de mãe. Quem governa fantasma? Quem chama? Ninguém, é ele mesmo que se convida.
Não tem nada a ver com aquela coisa de telenovela, aqueles dramas de folhetim em que se comenta: ele ainda gosta dela, não tira essa mulher da cabeça, até hoje é apaixonado por ela e etc. Nada disso. É pura farra de assombração, que irrompe de repente na hora própria oi imprópria, independentemente de vontade ou convite. Ora uma, ora outra, faz sua visita-relâmpago, muda ou falante e some.
Que dizem? Cada visitado recebe seu recado conforme gravou. Uma confessa trêmula, temerosa de desamor: “Não sou mais virgem” – quando isso tinha importância. Outra, espantada com as descobertas: “Eu não achava que ia gostar tanto disso”. Outra, cobrando: “Você não assume.” Outra, no escuro: “Quem é você?” Amores de outro mundo não se sentem obrigados a diálogo, dão seu recado e vão. Ou nem dão, só se entremostram.
Alguns perdem a viagem, e nos assaltam só com uma sensação, um nome, uma covinha, tranças negras. Não têm mais aparência corpórea. Será que morreram na vida real? Desvaneceram-se no tempo, frágeis como velhas cartas que se esfarelam, como madeira sem lei. Nem por isso menos reais em sua fantasmice, menos carentes de sentido que não a própria visita inesperada.
De maneira nenhuma pertubam o amor em curso, nem é essa sua intenção, se é que aparições têm algum propósito. O amor em curso é feito de beijo e resposta – e segue intocado por essas intromissões. Também não se pode dizer: são desejos, frustrações. Não. Tiveram, no seu tempo, beijo e resposta. Nada ficou por explorar, quando seus corpos eram matéria propícia. Foram generosas no dar, alegres no receber: tiveram fartura. Não vagam por aí à procura, estão satisfeitas no seu canto.
Nem se pode dizer: são visitas malfazejas. Pelo contrário, são cordiais! São borboletas: passam, enfeitam o instante com algumas cores, voejam e partem. Se deixam alguma coisa, é um sorriso na alma do visitado.
Ivan Ângelo
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