A palavra mais adequada para falar da profissão de ensinar em nossos dias é “heroísmo”. Quem se tornou professor, sabe o quanto lhe custou a própria construção. O quanto lhe custou vencer os monstros encontrados em portais, desertos e florestas que são as repartições públicas ou os territórios privados da burocracia institucional onde adquiriram um diploma, onde sonham lançar novos rumos para o conhecimento. Não falo apenas do tempo e do dinheiro implicados na formação cuidadosa de qualquer pessoa num país de escassas chances e sem projeto social, mas da dedicação subjetiva que constrói um professor como alguém cuja alma está aliada a um projeto hoje desvalorizado, o da construção e do cuidado com o sujeito do conhecimento, ele mesmo sujeito da sensibilidade.
Os professores estão à deriva tanto quanto está a educação no Brasil dos pobres, dos que não podem, aqueles que são submetidos à violência e à dominação vigentes e que jamais podem entrar em justas relações que fizessem reconstruir o sentido bom do poder. O Brasil dos que podem, dos que estão para além da violência institucionalizada é bem outro. Existem boas escolas e experiências educacionais valiosas. Mas a realidade como um todo não prevê poder de adquirir educação para todos. Ela não prevê poder para todos. No quanto a educação é estratégica para a formação de uma cultura e do território do político o seu descaso precisa ser desmascarado. Não é porque os dons do poder (sejam intelectuais, sejam oligarcas) não se interessam pelos pobres e aviltados, é justamente porque desejam que existam que hoje não podemos falar de um mero abandono da educação, mas de um projeto perverso no qual estamos todos, como sujeitos da sociedade, implicados.
Falo da alma dos professores, pois é disso que se trata. A existência de alguém que ainda possa se dizer professor hoje insinua a contradição. Professor é, justamente, aquele que não tem mais condições de sê-lo. A palavra alma retirada de nosso vocabulário acadêmico há tempos, reservada à miséria do romantismo em nossos dias ou ao pitoresco da religiosidade é a palavra mais adequada para expressar o vazio no qual foi abandonado o campo da educação. É pela alma dos professores que ele sobrevive. A alma é só o que resta diante da inexistência das condições para a educação. É a alma que o projeto funesto de educação em nossa sociedade pretende eliminar. Falo de um projeto funesto porque é preciso enunciar o nome próprio dos responsáveis pela destruição fundamental que está no imo de nossa sociedade e que tem sua organização no modo como estruturamos a educação deste país. Vou repetir uma idéia comum: é porque não há educação partilhada e orientada para o sentido maior da formação de um povo, é porque não há cultura, nem ética, nem cidadania que dela resultem que vivemos como hoje tolhidos pelo medo do futuro.
Penso nos professores quando redijo este texto, pois ainda que existam maus professores, assim como existem maus médicos e maus advogados, ou maus filósofos, ou maus representantes de qualquer área, é um fato que se “tornam professores” aqueles que assumem as premissas essenciais de sua prática como sua própria essência pessoal. Ser professor é uma vocação como deve ser qualquer profissão em seu fundo. É professor aquele que interiorizou uma prática e se fez a partir dela. É professor aquele que se ocupa em ser materno e paterno, irmão e amigo de pessoas desamparadas nas escolas das periferias. É professor aquele que, com seu não-poder age para consertar ou sustentar a vida intelectual possível no território da população reduzida à animalidade. O professor é o guardião da cultura, inclusive no seu sentido mais elementar de porta de entrada para a linguagem por meio da escrita. É o professor que ainda põe cada ser humano para além da animalidade à qual ele pode ser reduzido enquanto não participa ativamente da linguagem e seus jogos. Que jogos são esses? Os que envolvem as regras do saber, do poder, do agir, do conhecer, os jogos que só podem ser jogados por aqueles que foram autorizados a conhecer as regras. Nossa questão deve ser: como descobrir as regras e fazer com que o jogo perca o sentido antes que sejamos engolidos pelos que balançam as cordas dos títeres.
Ensinar é uma das mais fundamentais profissões que existem. Ela diz respeito à sustentação da sociedade como território de civilização e não barbárie. Ela anuncia um lugar essencial do humano: o lugar onde a dignidade do outro é preservada como preservação do humano. Professores hoje são ecologistas ativos. Não exagero em dizer. Isto significa que o humano está em extinção e a crise na profissão de ensinar é seu reflexo.
Por isso, proponho aqui um conceito a partir o qual possamos refletir sobre a condição de ensinar e que ações poderiam mudar as direções destrutivas de nossa sociedade: professor é aquele que, em nossa sociedade, responsabiliza-se hoje pela preservação do humano.
Sem o professor quem seríamos nós? Será que algo estaria ausente de que possamos sentir a falta? Para os que vivem cegos ou fingem-se de cegos, a educação não faz falta, podemos concordar com isso? Que posição podemos assumir diante do problema da educação em nosso país? Se eu não tivesse aprendido a ler com um ser humano, seria diferente minha relação com a leitura, com a aprendizagem, com o ensino? Que ponte entre eu e o conhecimento é um professor? Quais portas ele abre? Fecha-as? Pensemos bem.
Aqueles que, em condições adversas ensinam nos locais de difícil acesso, periferias e favelas são heróis. Exercem este heroísmo sem nome onde muitas vezes moram, junto de quem, como eles, recebe um salário escravo, o salário-para-a-fome ou nenhum recurso de parte alguma. Peço a quem lê que perdoe a crueza com que uso as palavras, mas é por necessidade de atenção para estes eventos comuns, mas banalizados, e para que, pela forma, provoquem reflexões. Aqueles que ensinam crianças que passam fome, que foram ou são violentadas ou estupradas por seus familiares e outros, os que ensinam os adultos que são alfabetizados fora do tempo merecem nossa reverência e nossa justiça. Os que ensinam os que não tem futuro numa sociedade cínica como esta em que vivemos e que, mesmo assim, não deixam de acreditar que um mundo melhor é possível, ensinam a todos nós, suas vidas é ensinar e precisamos prestar atenção. Atualmente somos, em geral, insensíveis para tudo o que nos cerca. Que possamos começar a projetar uma proposta diferente de sociedade é, por ora, o que peço.
Marcia Tiburi
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