A vida não se justifica pela utilidade. Ela se justifica pelo prazer e pela alegria.
A idéia de que o corpo carrega duas caixas – uma de ferramentas e uma de brinquedos – me apareceu quando lia um antiqüíssimo texto de Santo Agostinho.
Santo Agostinho disse do jeito dele. Eu digo do meu jeito, depois de havê-lo devorado e digerido. Ele disse na grave linguagem dos teólogos e filósofos. E eu digo a mesma coisa na leve linguagem do riso. Pois ele disse que todas as coisas que existem se dividem em duas ordens distintas.
A ordem do uti (ele escrevia em latim) e a ordem do frui. Uti, útil, utilizável, utensílio: uma coisa de se usa para obter outra. Frui, fruir, usufruir, desfrutar, amar uma coisa por causa dela mesma.
A ordem do uti é o lugar do poder. As ferramentas são inventadas para tornar o corpo mais poderoso. A ordem do frui, ao contrário, é a ordem do amor. As coisas dessa ordem não são ferramentas, não servem para nada, não são úteis, não são para serem usadas; existem para serem gozadas.
Faz tempo preguei uma peça num grupo de cidadãos da terceira idade. Velhos aposentados, inúteis. Comecei a minha fala solenemente. “Então os senhores e as senhoras finalmente chegaram à idade em que são totalmente inúteis ...” foi um pandemônio! Ficaram bravos e trataram de apresentar as provas da sua utilidade. Da sua utilidade dependia o sentido de suas vidas.
Comecei, então, mansamente, a argumentar. “Então vocês encontram sentido para suas vidas na utilidade... vocês são ferramentas. Não serão jogadas no lixo. Vassouras, mesmo velhas, são úteis. Uma música do Tom Jobim é inútil. Não há o que se fazer com ela. Os senhores e as senhoras estão me dizendo que se parecem mais com as vassouras que com a música do Tom... papel higiênico é muito útil. Mas um poema de Cecília Meireles é inútil. Não há o que fazer com ele. Os senhores e as senhoras estão me dizendo que preferem a companhia do papel higiênico à companhia do poema da Cecília...”
De repente os seus rostos se modificaram e compreenderam... A vida não se justifica pela utilidade. Ela se justifica pelo prazer e pela alegria. E foi precisamente isso que disse Santo Agostinho. As coisas da caixa de ferramenta nos dão meios para viver. Mas elas não nos dão razões para viver.
Coisas inúteis que dão prazer tem o nome de “brinquedos”. Armar quebra-cabeças, empinar pipas, rodar pião, jogar xadrez, bilboquê, jogar sinuca, dançar, ler um conto, ver caleidoscópio não levam a nada. Não existem para levar a coisa alguma. Quem está brincando já chegou. Compare a intensidade das crianças brincando com o seu sofrimento ao fazer fichas de leitura. Afinal de contas, para que servem as fichas de leitura? São úteis? Dão prazer?
Arte e brinquedo são a mesma coisa: atividades inúteis que dão prazer e alegria. Poesia, música, pintura, escultura, dança, teatro, culinária, são brincadeiras que inventamos para que o corpo encontre a felicidade, ainda que em breves momentos de distração, como diria Guimarães Rosa.
Assim vocês, professores e professoras, ao tentar ensinar algo aos seus alunos, devem se perguntar: isso é útil? Se não for útil tem de ser brinquedo... faz os alunos sorrir? Esse é o resumo da minha filosofia da educação.
P.S.: você é ferramenta ou brinquedo?
Rubem Alves
A idéia de que o corpo carrega duas caixas – uma de ferramentas e uma de brinquedos – me apareceu quando lia um antiqüíssimo texto de Santo Agostinho.
Santo Agostinho disse do jeito dele. Eu digo do meu jeito, depois de havê-lo devorado e digerido. Ele disse na grave linguagem dos teólogos e filósofos. E eu digo a mesma coisa na leve linguagem do riso. Pois ele disse que todas as coisas que existem se dividem em duas ordens distintas.
A ordem do uti (ele escrevia em latim) e a ordem do frui. Uti, útil, utilizável, utensílio: uma coisa de se usa para obter outra. Frui, fruir, usufruir, desfrutar, amar uma coisa por causa dela mesma.
A ordem do uti é o lugar do poder. As ferramentas são inventadas para tornar o corpo mais poderoso. A ordem do frui, ao contrário, é a ordem do amor. As coisas dessa ordem não são ferramentas, não servem para nada, não são úteis, não são para serem usadas; existem para serem gozadas.
Faz tempo preguei uma peça num grupo de cidadãos da terceira idade. Velhos aposentados, inúteis. Comecei a minha fala solenemente. “Então os senhores e as senhoras finalmente chegaram à idade em que são totalmente inúteis ...” foi um pandemônio! Ficaram bravos e trataram de apresentar as provas da sua utilidade. Da sua utilidade dependia o sentido de suas vidas.
Comecei, então, mansamente, a argumentar. “Então vocês encontram sentido para suas vidas na utilidade... vocês são ferramentas. Não serão jogadas no lixo. Vassouras, mesmo velhas, são úteis. Uma música do Tom Jobim é inútil. Não há o que se fazer com ela. Os senhores e as senhoras estão me dizendo que se parecem mais com as vassouras que com a música do Tom... papel higiênico é muito útil. Mas um poema de Cecília Meireles é inútil. Não há o que fazer com ele. Os senhores e as senhoras estão me dizendo que preferem a companhia do papel higiênico à companhia do poema da Cecília...”
De repente os seus rostos se modificaram e compreenderam... A vida não se justifica pela utilidade. Ela se justifica pelo prazer e pela alegria. E foi precisamente isso que disse Santo Agostinho. As coisas da caixa de ferramenta nos dão meios para viver. Mas elas não nos dão razões para viver.
Coisas inúteis que dão prazer tem o nome de “brinquedos”. Armar quebra-cabeças, empinar pipas, rodar pião, jogar xadrez, bilboquê, jogar sinuca, dançar, ler um conto, ver caleidoscópio não levam a nada. Não existem para levar a coisa alguma. Quem está brincando já chegou. Compare a intensidade das crianças brincando com o seu sofrimento ao fazer fichas de leitura. Afinal de contas, para que servem as fichas de leitura? São úteis? Dão prazer?
Arte e brinquedo são a mesma coisa: atividades inúteis que dão prazer e alegria. Poesia, música, pintura, escultura, dança, teatro, culinária, são brincadeiras que inventamos para que o corpo encontre a felicidade, ainda que em breves momentos de distração, como diria Guimarães Rosa.
Assim vocês, professores e professoras, ao tentar ensinar algo aos seus alunos, devem se perguntar: isso é útil? Se não for útil tem de ser brinquedo... faz os alunos sorrir? Esse é o resumo da minha filosofia da educação.
P.S.: você é ferramenta ou brinquedo?
Rubem Alves
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