sábado, 27 de junho de 2009

Zé Preá

O tempo, juiz de todos nós, se encarrega de prolatar algumas sentenças em nossas vidas, algumas, por sua natureza e precisão, são intocáveis e incorrigíveis em sua proficência e recordação. Uma que não me foge a mente nem me escapa os seus efeitos é a de que os amigos a gente escolhe, os parentes não. Talvez por isso tenhamos alguns amigos que mesmo longínquos são mais afeiçoados que irmãos. Nada contra os parentes, que por sinal, são poucos e distantes, também nenhum óbice aos amigos, patrimônio singular que ajuntei ao longo dessa vida, todos com defeitos e qualidades. Dentre eles, um cuidou de povoar-me a infância com mais freqüência na velha Fazenda Timbaúba e ainda hoje quando nossos caminhos se esbarram, privo com ele, vez por oura, de um dedinho de prosa e de sua agradável companhia. Trata-se de José Morais Pereira, de todos conhecido como Zé Preá, cujo apelido desconfio surgido de seu apurado gosto pela caça do roedor que vive nos capinzais à beira de córregos, lagoas e rios, saindo ao anoitecer para se alimentar de gramíneas. Cidadão comum, agricultor, sanfoneiro por opção, gente do povo, de poucas letras, embora dono de uma concordância gramatical muito própria, patenteada por ele e me parece que de uso exclusivíssimo.

Quando nós fomos apresentados, ele me pareceu mais velho do que eu; atualmente tenho dúvidas de que o Zé esteja muito mais novo, corado e disposto. Seu elixir? Nada de coisa do outro mundo: trabalha feito um touro, come como um padre e dorme como um urso. Afora isso, como dizia o poeta H. Dobal, “não lhe arde o desespero de ser dono de nada.” Preocupação mesmo só de ano em ano, com o inverno ou com a seca. Frequenta a cidade só para fazer a feira ou tirar um panarício. Disfrusco, tosse braba e a papeira dos meninos cura mesmo é com o remedinho do mato.

Foi o Zé quem me mostrou a mira e o estampido de uma lazarina, a atirar de balieira (ou baladeira como muitos chamam), a escolher um bom cambito e uma boa liga de pneu de bicicleta. E estava feito o estilingue, era só se embrenhar no mato.

Nascido e criado na roça, Zé Preá foi sempre munido de crenças, superstições e sabedorias. Perda de tempo era lhe assegurar a inexistência de botija, e mal-assombro lhe causava medo. Respeitava os dias grandes, inclusive a sexta-feira santa e era escabreado na sexta-feira treze. O trovão é o pai da coalhada. O leite de pinhão mata veneno de cobra. Pra curar hemorragia receitava a entrecasca do angico. A cantiga da acauã era prenuncio de seca na certa. A asa branca adivinhava chuva. O canto da coruja, da mãe-da-lua, da peitica e do bacurau era sinal de mal agouro.

A sua crença e superstição o torna até ingênuo e em sua sabedoria chega a ser desconfiado. Não há quem lhe convença que o homem foi à lua. Se foi, não volta. Se voltar é porque não foi.

A gordura é sinal de perigo. Se cobrir o coração mata. Vaticina ele, numa entonação quase apocalíptica! Talvez por isso ainda hoje se mantenha esguio. Nutrido o suficiente para segurar a sanfona e a lida no campo.

Manso no falar, abre a sanfona no terreiro de chão batido de sua casa de taipa onde a lua teima em clarear. Um acorde, um floreio, um verso solto, uma toada, uma voz que se perde na caatinga à dentro. Um grito de esperança e fé, marca de todo sertanejo calejado e forte.

Tem na água sua maior fortuna e a seca seu maior martírio. A chuva ele espera até o dia de São José. Não chegando, paciência, não vem mais.

Vigilante, é atento aos sinais da natureza. Os ninhos do João-de-barro, fura-berreira, o alvoroço das tanajuras, a festa das saúvas e o esconderijo dos marimbondos são sempre evidência de bom inverno e legumes fartos.

Talvez ele nem saiba, mas tive com o Zé uma convivência das mais valiosas e duradouras. Mas, um dia, tivemos de nos separar. Cortinas que se abrem no espetáculo da vida. Resolvi ir para a capital ser “doutor” e Zé Preá continuou aqui, sendo "doutor" na vida! Pena que nunca mais pude tomar as suas lições.


Teófilo Júnior

Junho de 2009

2 comentários:

Unknown disse...

A SOBERBA ESTÁ MAIS PRESENTE NOS "RICOS" DO QUE NOS "POBRES"; TALVEZ SEJA POR ISSO QUE NAS CAMADAS MATERIALMENTE MAIS CARENTES DE NOSSAS SOCIEDADE, ENCONTRAMOS ESPECIAIS EM MAIOR QUANTIDADE: NÃO QUE EU TENHA NADA CONTRA QUEM SE DEU "BEM" NA VIDA; É QUE GERALMENTE QUEM TEM MAIS DINHEIRO ESQUECE UM MONTE DE COISAS: VALORES, LEALDADE, AMIGOS...EMFIM...VOCÊ DEVE ESTAR SE PERGUNTANDO: E O QUE ISSO TEM A VER COM O COMENTÁRIO RELATIVO AO TEXTO DE ZÉ PREA ??? E EU DIGO: TEM TUDO A VER; POIS SÃO POUCAS AS PESSOAS QUE RECONHECEM O VALOR DAQUELAS PESSOAS MAIS SIMPLES; SÃO POUCOS O QUE TEM O OLHAR ACIMA DA MÉDIA...VENDO NA CARÊNCIA A GRANDEZA; COMO UM LÍRIO NO MEIO DO DESERTO DA DOR E DA INJUSTIÇA DOS HOMENS. ZÉ PREÁ É MAIS UM QUE TEÓFILO JÚNIOR COM SUA VISÃO AGUÇADA, O QUE LHE É NATURAL, OBSERVA NÃO SÓ O SER HUMANO, MAS NÃO SE ESQUEÇE DO ARTISTA ...UM VERDADEIRO "MICHAEL JACKSON DA SANFONA", AMENIZANDO A ARIDEZ DA SUA VIDA E DAS PESSOAS NESTE SERTÃO ÁRIDO DE HOMENS E É POR ISSO QUE DIGO: EM NOME DE ZÉ PREÁ E DOS ESQUECIDOS DO MUNDO...MUITO OBRIGADO PELA HOMENAGEM :)

Unknown disse...

No reino de Deus, os últimos serão os primeiros :)