Dois livros inéditos de Ariano Suassuna (1927-2014) chegaram às livrarias nesta semana: O jumento sedutor e O palhaço tetrafônico. Juntos, eles compõem o Romance de Dom Pantero no palco dos pecadores.
A publicação é da editora Nova Fronteira e o lançamento oficial ocorre
no dia 9 de dezembro no Recife, na Livraria Cultura do RioMar Shopping.
O trecho abaixo é o início da primeira carta de O jumento sedutor.
Os dois livros são compostos, cada um, por quatro cartas que Antero
Savedra publica em um suplemento pseudoliterário chamado Sibila, do
jornal A voz de Igarassu. Ele dirige a correspondência “Aos nobres
Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino”, como se vê no trecho
abaixo.
Segundo o poeta e professor Carlos Newton Júnior, que assina o
prefácio, Ariano começou a escrever o Romance nos anos 1980. O projeto
representa o desejo do escritor de fazer algo como uma condensação de
sua produção como artista e pensador – criar uma obra que transcenda a
literatura e siga pelas artes plásticas e pelo teatro.
O neologismo “Ilumiara”, que consta no texto, era usado por Ariano
tanto para se referir aos anfiteatros rústicos que os primeiros
habitantes do Brasil provavelmente usavam como locais de culto. Ele
passou a usar o termo, também, para classificar vários conjuntos
artísticos realizados em diversas épocas e lugares que, segundo Carlos
Newton, pudessem ser vistos como manifestação da força criativa de um
povo. Também usa essa palavra para designar como sua obra, em sua visão,
era um marco do Brasil verdadeiro e representava um caminho mais justo e
fraterno para ser trilhado socialmente; e mais belo e original do que o
caminho da descaracterização surgido a partir da globalização.
A obra tem forte apelo visual e, na impossibilidade de reproduzi-lo
aqui em virtude da formatação deste site, fizemos algumas opções para
sinalizar a presença de elementos visuais. Os itálicos são, de fato,
itálicos do texto. O que estiver em negrito marca a tipografia armorial no livro.
Todas as páginas de O jumento sedutor e de O palhaço tetrafônico
têm imagens. Elas não serão reproduzidas aqui. Desta forma, este
inédito proporciona uma leitura meramente textual (nesse caso, parcial)
de uma obra complexa que engloba outras dimensões. Fica, portanto, como
convite ao leitor/à leitora para uma imersão posterior no livro.
***
Sibila
Moda, Turismo & Lazer
Igarassu, 8 de Março de 2014
23 de Abril de 2016
Proposição
Com cavalos, atores, dançarinos e música‐de‐câmera
Prólogo a'O Espelho dos Encobertos
Aos nobres Cavaleiros e belas Damas da Pedra do Reino.
Amigos:
Uma vez, quando eu era bem menino, um Escorpião picou meu calcanhar.
Talvez por causa disso,“têm, para mim, Visões de um outro Mundo, as
Noites luminosas, azuladas, quando a Lua aparece mais bonita”.
Mas é verdadeira, também, a face reversa da Medalha: “Têm, para mim,
Visões de um outro Mundo, as Noites perigosas e queimadas, quando a Lua
aparece mais vermelha.”
Num caso e noutro, tais Visões me surgem porque à noite, ao som de
Violinos, Pianos, Violões, Flautas e Violoncelos, o Espelho grial e
multifacetado que fulge em meu sangue reflete à luz da Lua a imagem de
um velho Jaguar, talvez já meio cego mas ainda errante pela Caatinga
devastada, não se sabe à espera de quê.
Sendo eu antes de mais nada um Ator e Encenador, em minha formação
literária meus dois primeiros grandes Mestres foram Alexandre Dumas e
Rafael Sabatini. Este escreveu, abrindo‐me a
visão do Mundo como um Palco e da Vida como um Espetáculo:
visão do Mundo como um Palco e da Vida como um Espetáculo:
Rafael Sabatini Savedra
“Procuro consolar‐me com a lembrança de Epiteto. Dizia ele que todos
nós não passamos de atores no Palco da vida, e que representamos os
papéis que o Diretor acha por bem confiar‐nos.”
Dom Pantero
Um outro Mestre nosso, Gustavo Adolfo Bécquer, nem de longe se pode
comparar aos dois primeiros. Mas também foi importante para mim, porque
seus versos evocavam a figura de minha perdida, amada e jamais esquecida
Liza Reis:
Gustavo Adolfo Shabino Bécquer
— “Eu sou ardente, sensual, morena, eu sou o símbolo da paixão.
De ânsias de gozo minh’alma é plena. A mim me queres? — Não, a ti não!
— “De fronte pálida e tranças de ouro, posso ofertar‐te ditas sem
fim. Eu de ternuras guardo um tesouro. A mim procuras? — Não, não a ti!
— “Eu sou um Sonho louco, impossível, vago fantasma de névoa e
luz. Sou incorpórea, sou intangível. Não posso amar‐te. — Oh vem, vem
tu!”
Antero Savedra
Pois bem: obsedado pelo Palco, vivo pela Estrada em busca de Deus, do
Santo Graal e do “Sonho impossível” de Liza Reis; e este
Castelo-de-Cartas-Espetaculosas foi composto nos moldes do Evangelho de
São Lucas, dos Atos dos Apóstolos e das Epístolas de São Paulo; com base
nas minhas “Memórias”, nas “Saídas” ligadas às “Aulas‐Espetaculosas”, na “paixão” de Quaderna e nos anais do Simpósio Quaterna, instaurado em Taperoá, a 9 de Outubro de 2000. Por isso deve se apresentar como um Diálogo,
no qual os interlocutores aparecem sob o comando de Dom Pantero do
Espírito Santo. No conjunto, fundindo‐se, nele, Encenação e Narrativa,
forma uma espécie de Romance‐de‐Epopeia‐Lírica, de
Espetáculo‐de-Circo ou de grande Peça‐de‐Teatro, na qual Dom Paribo
Sallemas, Dom Pancrácio Cavalcanti e Dom Porfírio de Albuquerque
integram comigo o grupo dos Narradores principais (pois Altino, Auro e
Adriel, mais do que Narradores, são Personagens que, tendo já morrido,
tiveram a encarná -los, no Circo‐Teatro Savedra, 3 dos melhores Atores que compareceram ao Simpósio).
Devo explicar a Vocês que nossas vidas foram marcadas por 4
acontecimentos terríveis. O primeiro surgiu quando, a 9 de Outubro de
1930, meu Pai foi assassinado com um tiro pelas costas. O segundo,
quando meu irmão Mauro se matou com 3 punhaladas desferidas contra o
peito, o que sucedeu no dia nefasto de 6 de Outubro de 1970. O terceiro e
o quarto, quando Auro e Adriel foram também assassinados.
Ora, uma vez meu Tio, Mestre e Padrinho Antero Schabino afirmara que nós, Savedras, éramos “uma família trágica, como a dos Átridas”. Por isso A Ilumiara é uma espécie de Orestíada,
narrada, não por Ésquilo, mas sim por aquele que, na trama, seria um
outro Orestes ou um novo Hamlet (ambos filhos de Pai assassinado, de um
Rei assassinado). Mas este “Hamlet” acertaria a vencer sua dor no Palco e
na Estrada, por meio das Armas que Deus lhe concedeu — “o galope do Sonho”, do Rei, e “o Riso a cavalo”, do palhaço.
Dom Paribo Sallemas
Albano Cervonegro
Quem, seguro de si, cego no Sol, entrar por este Pasto
incendiado, verá o riso, o choro e o desatino de um grande Povo, pobre e
iluminado, forjado ao sol‐castanho da Favela e ao sangue do Arraial do
Leopardo.
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