sábado, 2 de dezembro de 2017

Para quem, afinal, a desigualdade é o grande problema?

A inveja, esse “monstro de olhos verdes” de que falou Shakespeare, sempre foi um grande motivador de teorias e elucubrações intelectuais
 
Peço ao leitor que responda sinceramente: se pudesse escolher, preferiria ser pobre nos EUA ou na Etiópia? Se a resposta for EUA, então você não acha que a desigualdade é o grande problema de um país. Porque a verdade é que os EUA são muito mais desiguais do que a Etiópia.

O índice que mede a desigualdade de renda num país é o chamado coeficiente de Gini, que varia numa escala de 0 a 1, em que 0 representa uma hipotética igualdade plena (todos tendo exatamente a mesma renda) e 1 uma hipotética desigualdade máxima (uma pessoa detendo sozinha toda a riqueza nacional). Nos últimos anos, aquele país africano tem feito uma pontuação média de 0,3 enquanto o gigante da América, de 0,4. Segundo o coeficiente Gini, portanto, a Etiópia é cerca de 0,1 ponto mais igualitária do que os EUA. E eu já posso imaginar o que se passa na cabeça do leitor sincero: “Grande coisa! Prefiro mil vezes a desigualdade americana à igualdade etíope!”

De nada adianta distribuir melhor a riqueza se ela for escassa 

O leitor está certo, evidentemente. Como têm apontado analistas de perfil liberal (que, felizmente, começam a se tornar mais numerosos no Brasil), o maior problema econômico de um país não é a desigualdade, mas a pobreza. De nada adianta, por exemplo, aquele igualitarismo na miséria tão comum a regimes socialistas como os da antiga Cortina de Ferro, ou os de Venezuela e Cuba, onde, à exceção do tirano e seu ciclo mais próximo, toda a população vive na escassez, tendo de enfrentar filas intermináveis por sua ração diária de alimento.

O caso do Brasil é significativo. Embora a grande imprensa tenha feito um escarcéu sobre os dados divulgados pelo IBGE na última quarta-feira (29) dando conta de que 1% dos brasileiros mais ricos recebem 36 vezes mais que os 50% mais pobres, o fato é que a nossa desigualdade de renda vem caindo nos últimos anos. De 2001 até 2015, o país reduziu em cerca de 0,1 o seu coeficiente de Gini. O grande problema é que essa redução se fez acompanhar de um empobrecimento geral do país, um nivelamento por baixo. Naquele mesmo ano, o nosso rendimento mensal médio recuou mais de 5%. Todas as classes sociais ficaram mais pobres.

Ora, de nada adianta distribuir melhor a riqueza se ela for escassa. Mais vale viver num país onde o pobre possa comprar um carro popular, mesmo que o rico tenha três Lamborghinis na garagem, do que num em que todos só possam ter uma bicicleta enferrujada (ou nem mesmo isso) para se locomover. Mais que distribuir uma quantidade estática de riqueza (a tão equivocada premissa marxista, segundo a qual a economia é um jogo de soma zero), é preciso criá-la e expandi-la. E a única forma de fazê-lo é mediante estímulo ao livre mercado e ao empreendedorismo.

Mas, de modo geral, formados em instituições de ensino onde prevalecem variações sobre um tema de fundo marxista, os jornalistas brasileiros parecem estar muito mais preocupados com a distribuição do que com a criação, ou seja, com tirar dos ricos mais do que com dar aos pobres. Para o principal jornal carioca, por exemplo, os dados do IBGE mostram que a “desigualdade ainda é batalha a ser vencida”. Manchetes com o mesmo teor circularam nos principais jornais e revistas do país, todos, aparentemente, aceitando de maneira acrítica a premissa marxista. Todos, em suma, desejando para o Brasil a Etiópia, e não os EUA, como futuro.

Numa conhecida altercação no Parlamento britânico, Margaret Thatcher responde a um interlocutor do Partido Trabalhista, que a questionara sobre a desigualdade nos mesmos termos que os agora usados por nossa imprensa. “O que o nobre cavaleiro está dizendo”, ironiza Thatcher, “é que preferiria que os pobres estivessem mais pobres, desde que os ricos estivessem menos ricos”. Nessa curta e elegante resposta, a Dama de Ferro sintetizou a fórmula marxista e filo-marxista para a economia, que se baseia muito mais numa inveja dos ricos do que numa preocupação legítima com a condição de vida dos pobres.

A inveja, esse “monstro de olhos verdes” de que falou Shakespeare, sempre foi um grande motivador de teorias e elucubrações intelectuais, não apenas dos marxistas, evidentemente. Na verdade, desde que assumiu a sua forma arquetípica no século XVIII, sobretudo na França, o intelectual contemporâneo, detentor de poder cultural, tem mantido uma relação ambivalente com os dois outros grandes tipos de poder existentes, o político e o econômico, ambivalência expressa naquele misto de fascínio e repulsa tão típico do quinto pecado capital.

Tendo abordado a relação do intelectual com a política na resenha que escrevi sobre o livro A Mente Imprudente, de Mark Lilla, e que saiu semana passada aqui na Gazeta, encerro este artigo com uma breve reflexão sobre a relação do intelectual com o poder econômico, que me parece uma boa chave explicativa para, entre outras coisas, a repulsa da intelligentsia brasileira pela desigualdade, bem como o seu fascínio pela pobreza.

O intelectual está sempre nas cercanias dos poderes político e econômico e, a acreditarmos na teoria do desejo de René Girard, essa contiguidade (ou “mediação interna”, na fórmula girardiana) costuma ser o caldo em que fermenta a inveja. Um traço distintivo do poder que o intelectual detém, e que o separa dos outros dois poderes, diz respeito à sua temporalidade. Ao contrário do poder político e do econômico, o poder cultural opera no longo prazo, raramente produzindo efeitos imediatos. O intelectual influente não costuma viver o bastante para testemunhar as consequências práticas de suas ideias.

Para além das diferenças individuais de personalidade, aquilo talvez explique a inveja estrutural que os intelectuais no Ocidente, com seu espírito algo aristocrático e sua tendência ao abstracionismo, têm demonstrado nos últimos três séculos em face de burgueses, comerciantes e empresários, que, sem o refinamento espiritual daqueles, conseguem, todavia, produzir riqueza, bens e mercadorias, influenciando diretamente a vida de milhões de pessoas.

Dentre as teorias surgidas para dar conta desse mal-estar intelectual, o marxismo foi decerto a mais sedutora, convertendo-se numa espécie de vingança dos intelectuais impacientes, reféns das características inerentes ao seu poder, contra os detentores do poder econômico. Trata-se, em suma, de uma rivalidade entre tipos de poder, de uma briga de cachorro grande. Os pobres entram nessa equação apenas como pretexto. Nesse contexto, não espanta que tantos jornalistas brasileiros, mestres por excelência da “mediação interna”, vivendo sempre em meio a intelectuais, empresários e políticos, bebam do cálice marxista de maneira quase automática e semiconsciente, reproduzindo ad aeternum a nossa cultura estatista e antiempresarial.
 
Flávio Gordon é antropólogo e autor do livro “A Corrupção da Inteligência”
Gazeta do Povo

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