A inveja, esse “monstro de olhos verdes” de que falou Shakespeare,
sempre foi um grande motivador de teorias e elucubrações intelectuais
Peço ao leitor que responda sinceramente: se pudesse escolher, preferiria ser pobre nos EUA ou na Etiópia? Se
a resposta for EUA, então você não acha que a desigualdade é o grande
problema de um país. Porque a verdade é que os EUA são muito mais
desiguais do que a Etiópia.
O índice que mede a desigualdade de renda num país é o chamado
coeficiente de Gini, que varia numa escala de 0 a 1, em que 0 representa
uma hipotética igualdade plena (todos tendo exatamente a mesma renda) e
1 uma hipotética desigualdade máxima (uma pessoa detendo sozinha toda a
riqueza nacional). Nos últimos anos, aquele país africano tem feito uma
pontuação média de 0,3 enquanto o gigante da América, de 0,4. Segundo o coeficiente Gini, portanto, a Etiópia é cerca de 0,1 ponto mais igualitária do que os EUA. E eu já posso imaginar o que se passa na cabeça do leitor sincero: “Grande coisa! Prefiro mil vezes a desigualdade americana à igualdade etíope!”
De nada adianta distribuir melhor a riqueza se ela for escassa
O leitor está certo, evidentemente. Como têm apontado analistas de
perfil liberal (que, felizmente, começam a se tornar mais numerosos no
Brasil), o maior problema econômico de um país não é a desigualdade,
mas a pobreza. De nada adianta, por exemplo, aquele igualitarismo na
miséria tão comum a regimes socialistas como os da antiga Cortina de
Ferro, ou os de Venezuela e Cuba, onde, à exceção do tirano e seu ciclo
mais próximo, toda a população vive na escassez, tendo de enfrentar
filas intermináveis por sua ração diária de alimento.
O caso do Brasil é significativo. Embora a grande imprensa tenha
feito um escarcéu sobre os dados divulgados pelo IBGE na última
quarta-feira (29) dando conta de que 1% dos brasileiros mais ricos
recebem 36 vezes mais que os 50% mais pobres, o fato é que a nossa
desigualdade de renda vem caindo nos últimos anos. De 2001 até 2015, o
país reduziu em cerca de 0,1 o seu coeficiente de Gini. O grande
problema é que essa redução se fez acompanhar de um empobrecimento geral
do país, um nivelamento por baixo. Naquele mesmo ano, o nosso
rendimento mensal médio recuou mais de 5%. Todas as classes sociais
ficaram mais pobres.
Ora, de nada adianta distribuir melhor a riqueza se ela for escassa.
Mais vale viver num país onde o pobre possa comprar um carro popular,
mesmo que o rico tenha três Lamborghinis na garagem, do que num em que
todos só possam ter uma bicicleta enferrujada (ou nem mesmo isso) para
se locomover. Mais que distribuir uma quantidade estática de
riqueza (a tão equivocada premissa marxista, segundo a qual a economia é
um jogo de soma zero), é preciso criá-la e expandi-la. E a única forma
de fazê-lo é mediante estímulo ao livre mercado e ao empreendedorismo.
Mas, de modo geral, formados em instituições de ensino onde
prevalecem variações sobre um tema de fundo marxista, os jornalistas
brasileiros parecem estar muito mais preocupados com a distribuição do
que com a criação, ou seja, com tirar dos ricos mais do que com dar aos
pobres. Para o principal jornal carioca, por exemplo, os dados do
IBGE mostram que a “desigualdade ainda é batalha a ser vencida”.
Manchetes com o mesmo teor circularam nos principais jornais e revistas
do país, todos, aparentemente, aceitando de maneira acrítica a premissa
marxista. Todos, em suma, desejando para o Brasil a Etiópia, e não os EUA, como futuro.
Numa conhecida altercação no Parlamento britânico, Margaret Thatcher
responde a um interlocutor do Partido Trabalhista, que a questionara
sobre a desigualdade nos mesmos termos que os agora usados por nossa
imprensa. “O que o nobre cavaleiro está dizendo”, ironiza Thatcher, “é que preferiria que os pobres estivessem mais pobres, desde que os ricos estivessem menos ricos”. Nessa
curta e elegante resposta, a Dama de Ferro sintetizou a fórmula
marxista e filo-marxista para a economia, que se baseia muito mais numa
inveja dos ricos do que numa preocupação legítima com a condição de vida
dos pobres.
A inveja, esse “monstro de olhos verdes” de que falou Shakespeare,
sempre foi um grande motivador de teorias e elucubrações intelectuais,
não apenas dos marxistas, evidentemente. Na verdade, desde que
assumiu a sua forma arquetípica no século XVIII, sobretudo na França, o
intelectual contemporâneo, detentor de poder cultural, tem mantido uma
relação ambivalente com os dois outros grandes tipos de poder
existentes, o político e o econômico, ambivalência expressa naquele
misto de fascínio e repulsa tão típico do quinto pecado capital.
Tendo abordado a relação do intelectual com a política na resenha que escrevi sobre o livro A Mente Imprudente, de Mark Lilla, e que saiu semana passada aqui na Gazeta, encerro este artigo com uma breve reflexão sobre a relação do intelectual com o poder econômico, que me parece uma boa chave explicativa para, entre outras coisas, a repulsa da intelligentsia brasileira pela desigualdade, bem como o seu fascínio pela pobreza.
O intelectual está sempre nas cercanias dos poderes político e econômico
e, a acreditarmos na teoria do desejo de René Girard, essa contiguidade
(ou “mediação interna”, na fórmula girardiana) costuma ser o caldo em
que fermenta a inveja. Um traço distintivo do poder que o intelectual
detém, e que o separa dos outros dois poderes, diz respeito à sua
temporalidade. Ao contrário do poder político e do econômico, o poder cultural opera no longo prazo, raramente produzindo efeitos imediatos. O intelectual influente não costuma viver o bastante para testemunhar as consequências práticas de suas ideias.
Para além das diferenças individuais de personalidade, aquilo talvez
explique a inveja estrutural que os intelectuais no Ocidente, com seu
espírito algo aristocrático e sua tendência ao abstracionismo, têm
demonstrado nos últimos três séculos em face de burgueses, comerciantes e
empresários, que, sem o refinamento espiritual daqueles, conseguem,
todavia, produzir riqueza, bens e mercadorias, influenciando diretamente
a vida de milhões de pessoas.
Dentre as teorias surgidas para dar conta desse mal-estar
intelectual, o marxismo foi decerto a mais sedutora, convertendo-se numa
espécie de vingança dos intelectuais impacientes, reféns das
características inerentes ao seu poder, contra os detentores do poder
econômico. Trata-se, em suma, de uma rivalidade entre tipos de poder, de uma briga de cachorro grande. Os pobres entram nessa equação apenas como pretexto. Nesse contexto, não
espanta que tantos jornalistas brasileiros, mestres por excelência da
“mediação interna”, vivendo sempre em meio a intelectuais, empresários e
políticos, bebam do cálice marxista de maneira quase automática e
semiconsciente, reproduzindo ad aeternum a nossa cultura estatista e
antiempresarial.
Flávio Gordon é antropólogo e autor do livro “A Corrupção da Inteligência”
Gazeta do Povo
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