Ninguém pode negar o conflito como parte fundamental do fenômeno
político. Só existe política porque existem diferenças, discordâncias,
visões de mundo que se distanciam, ideologias, lutas por direitos, por
hegemonia. Isso quer dizer que no cerne do fenômeno político está a
democracia como um desejo de participação que implica as tensões
próprias à diferença que busca um lugar no contexto social.
A demonização da política é, em grande medida, a demonização das
próprias diferenças. E da possibilidade de buscar soluções para conviver
com as diferenças. Do mesmo modo, a crítica é uma necessidade. Sem a
crítica – e a autocrítica -, perde-se o movimento dialético capaz de
superar as tensões, reconhecer erros e transformar a sociedade. Deve-se,
pois, abandonar a perspectiva ingênua de perceber a existência de
conflitos como algo ruim ou de negar à crítica sua função
transformadora.
Esse texto não tem por finalidade tratar da importância do conflito
ou da crítica, mas analisar um fenômeno que surgiu, e se potencializou,
na era das redes sociais: a “militância de tribunal”. Essa prática é
apresentada como manifestação de ativismo político, mas se reduz ao ato
de proferir julgamentos, todos de natureza condenatória, contra seus
adversários e, muitas vezes, em desfavor dos próprios parceiros de
projeto político. São típicos julgamentos de exceção, nos quais a figura
do acusador e do julgador se confundem, não existe uma acusação bem
delimitada, nem a oportunidade do acusado se defender. Nesses
julgamentos, que muito revela do “militante de tribunal”, os eventuais
erros do “acusado”, por um lado, são potencializados, sem qualquer
compromisso com a facticidade; por outro, perdem importância para a
hipótese previamente formulada pelo acusador-julgador, a partir de
preconceitos, perversões, ressentimentos, inveja e, sobretudo, ódio.
Ódio direcionado ao inimigo, aquele com o qual o “acusador-julgador”
não se identifica e, por essa razão, nega a possibilidade de dialogar e,
o que tem se tornado cada vez mais frequente, o ódio relacionado ao
próximo, aquele que é, ou deveria ser, um aliado nas trincheiras
políticas. Ódio que nasce daquilo que Freud chamou de “narcisismo das
pequenas diferenças”. Ódio ao semelhante, aquele que admiramos, do qual
somos “parceiros”, ao qual, contudo, dedicamos nosso ódio sempre que ele
não faz exatamente aquilo que deveria – ou o que nós acreditamos que
deveria – fazer.
Exemplos não faltam. Pense-se na militante feminista que gasta mais
tempo a “condenar” outras mulheres, a julgar outros “feminismos”, do que
no enfrentamento concreto à dominação masculina. A Internet está cheia
de exemplos de especialistas em julgamento e condenação. A caça por
sucesso naquilo que imaginam ser o “clubinho das feministas” (por muitas
que se dizem feministas enquanto realizam o feminismo como uma mera
moral) tem algo da antiga caça às bruxas que regozija até hoje o
machismo estrutural. Nunca se verá a “militante de tribunal feminista”
em atitude isenta elogiando a postura correta, mas sempre
espetacularizando a postura “errada” daquela que deseja condenar. Muitas
constroem seus nomes virtuais, seu capital político, aquilo que
imaginam ser um verdadeiro protagonismo feminista, no meio dessas
pequenas guerras e linchamentos virtuais nas quais se consideram
vencedoras pela gritaria. Há, infelizmente, feministas que se perdem,
esvaziam o feminismo e servem de espetáculo àqueles que adoram odiar o
feminismo. Quem ganha com isso? O inimigo forte que essas feministas não
têm coragem de enfrentar, o patriarcado e todas as suas manifestações,
pois a feminista que adota a postura de “militante de tribunal” se
contenta em extrair prazer da condenação do inimigo que considera fraco,
campo composto por outras mulheres, e exerce sua “força” sobre alguém
que julga moralmente inferior a elas\si mesma, com isso reduzindo o
feminismo a um joguinho virtual entre inquisidoras e vítimas, pautado
por uma moral rasteira e confusões conceituais. Apoio mesmo, concreto,
às grandes lutas do feminismo, isso não, pois não é tão fácil nem deve
dar tanto prazer quanto a condenação no tribunal virtual montado em sua
própria casa.
O recente episódio envolvendo a visita do deputado Jean Wyllys ao
Estado de Israel é também muito significativo. Para além da crítica
necessária ao evento e à política de Israel, muitos militantes de
“direitos humanos” passaram a condená-lo de forma agressiva e
desproporcional, isso em desconsideração ao histórico do parlamentar na
defesa dos direitos humanos. Algumas manifestações contra o deputado
fazem pensar nos aspectos subterrâneos da crítica. Oportunismo político?
Não só. Ao lado da perversão inquisitorial, dos juízos condenatórios
apressados, de uma espécie de clamor por uma pureza impossível no
mundo-da-vida, o “militante de tribunal”, não raro, busca se capitalizar
politicamente, reafirmar sua pureza frente ao herege, mas ao condenar
quem se notabilizou por expor a face em diversas lutas políticas,
algumas em franca oposição aos senso comum idiotizante, o militante de
tribunal busca a absolvição de suas omissões, de seus silêncios, de sua
covardia.
Quem nunca se manifestou publicamente pela racionalização do
tratamento conferido ao aborto e às drogas ilícitas, pela humanização do
parto, pela regulamentação de profissões historicamente estigmatizadas,
pelo respeito às diferenças, pelos direitos das mulheres, gays e
lésbicas, preocupou-se agora em atacar o Jean. Quem ganha com isso? O
inimigo forte que essas mesmas pessoas não têm disposição, nem coragem,
de atacar. Tão gritante quanto a virulência dos juízos condenatórios
proferidos a partir da poltrona da casa do “militante de tribunal” é o
silêncio desses mesmos militantes em relação às práticas de diversos
outros parlamentares brasileiros.
Volta-se ao início: por evidente, as criticas são fundamentais à
correção de rumo, às transformações tanto coletivas quanto individuais.
Não é disso que se trata nesse texto. O “militante de tribunal” não quer
a transformação, quer apenas a punição do inimigo ou do semelhante,
punição estéril, espetacular, punição para que tudo continue do mesmo
jeito, para manter o seu próprio poder, para justificar o tribunal que
montou no sofá de sua casa diante de um computador.
Márcia Tiburi e Rubens Casara
Publicado originalmente aqui
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