Quem acredita em reencarnação e pesquisa suas vidas passadas geralmente descobre que foi, se não um herói homérico, nunca menos do que um faraó, rainha ou artista famoso
No seu livro “Fantastic Metamorphoses, Other Worlds”, a inglesa Marina
Warner lembra que Platão encerra a sua “República” com a descrição que
Sócrates faz dos heróis de Homero escolhendo suas vidas futuras, ou os
seres que suas almas habitarão depois da morte. Orfeu escolhe voltar
como um cisne; Ajax, um leão; Agamenon, uma águia.
Muitos preferem reencarnações de acordo com o seu passado. O corredor
Atalanta quer voltar como atleta. O construtor do Cavalo de Troia quer
ser uma artesã, com o mesmo ofício, mas outro sexo. Um bufão escolhe
voltar como macaco. Etc.
Mas Ulisses, herói maior da Odisseia, prefere voltar como um homem
comum. A alma de Odisseus escolhe o ser que os outros desprezaram para
ocupar em sua outra vida. Um bicho simples, um anti-Ulisses que nenhuma
aventura tirará de casa.
PUBLICIDAD
Quem acredita em reencarnação e pesquisa sobre suas vidas passadas
geralmente descobre que foi, se não um herói homérico, nunca menos do
que um faraó, uma rainha ou um artista famoso. Ninguém admite ter sido
um piolho ou uma faxineira em Versalhes. E todos têm um consolo para a
sua atual condição: ela não passa de uma etapa, uma transição entre um
grande personagem e outro, fazendo estágio como apenas ele.
O mito socrático introduz a ideia de que se pode escolher nossa próxima
vida (primeirão massagista de miss) mas o que fascina é a opção de
Ulisses pela mediocridade reconfortadora, pela pacatez como um refúgio.
Ulisses não quer ser mais ninguém, quer ficar a salvo da vida e da
História. Ao contrário de quem não se conforma de não ter sido alguma
coisa mais do que é em algum lugar do passado, ele opta por não ser nem
Ulisses nem coisa parecida, no futuro.
O livro de Marina Warner é sobre transformações a partir do poema
“Metamorfoses”, de Ovídio. Transformação como recurso literário,
presente em todo tipo de narrativa desde os primeiros mitos até o
realismo fantástico, e transformação como mágica e mistério, na outra
história da humanidade que coexiste com a história racional, ou em
outras feitiçarias além das judaico-cristãs.
O trecho que cita Ulisses é uma digressão sobre a transmigração das
almas, a metamorfose final, mas gostei da ideia do nosso herói pedindo
apenas descanso para a sua. Afinal, toda a “Odisseia” não passa da
história de alguém não querendo outra coisa a não ser voltar para os
braços da patroa.
Luis Fernando Veríssimo
Do blog do Noblat
Nenhum comentário:
Postar um comentário