O conto – assim como as
opiniões nuançadas, as amizades apartidárias, a lógica aristotélica, o
uso da vírgula no vocativo… – é uma das vítimas levianamente
sacrificadas em certos altares do gosto contemporâneo. De tempos em
tempos, legiões de argumentos malfazejos se levantam, como alegorias de
Bosch em um quadro da Paixão, contra a nobre e circunscrita figura do
relato curto. Coletaremos apenas alguns espécimes dessa fauna hirsuta:
diz-se, a respeito do conto, que é um “gênero menor”, simples
treinamento para o romance, espécie de onanismo – salutar, mas superável
– na puberdade autoral; e que, por seu nanismo, é incapaz de engendrar a
experiência de imersão ficcional que caracteriza as narrativas longas.
Antipatizo cordialmente com essas opiniões: alhures, poderíamos
considerá-las apenas frutos equívocos da distância e do desconhecimento;
mas aqui, no Continente do Conto, onde se forjaram Ficções, Todos os fogos o fogo e Sagarana, parece haver nelas algo de espantosamente masoquista. Permitam-me jogar fora o cilício. Vamos às refutações.
Foto: Sara Facio
Comecemos por aquele que costumo
denominar o “argumento volumétrico”: por ser literalmente menor que um
romance – em extensão, em comprimento, em massa, como preferirem –, o
conto deve ser-lhe, naturalmente, inferior. Essa conclusão se baseia no
axioma primário de que o conto “dá menos trabalho para escrever” e,
portanto, só poderia ocupar um quartinho dos fundos na famosa torre de
marfim da Grande Arte. Mas esse cálculo de merecimentos e labores se
embaralha em uma falácia de origem: está-se comparando, aí, a composição
de um romance inteiro com a de um único
conto. Ora, nesse caso, terei de recorrer à veemente réplica infantil:
isso não vale. Não nego a existência do conto avulso, concebido para as
páginas da revista especializada ou, vá lá, para o sítio virtual
apropriado; mas ocorre que o contista elementar é aquele que se dedica à
produção de narrativas curtas em sequência mais ou menos regular e no
âmbito de um certo projeto estético – projeto que redundará, de
preferência, em uma coletânea. E, nesses termos, nada garante que 100
páginas de romance sejam mais difíceis de escrever do que 100 páginas de
um livro de contos. Em todo caso, ninguém precisa se contentar com minha módica opinião; recorramos à experiência de um profuso habitué de diferentes gêneros literários. Em 1976, Gabriel García Márquez estava escrevendo seus Doze Contos Peregrinos;
na metade do terceiro relato, sentiu-se mais cansado do que se
estivesse trabalhando em um romance. Refletindo sobre sua própria
exaustão, concluiu o seguinte: “o esforço de escrever um conto curto é
tão intenso como o de começar um romance. Pois no primeiro parágrafo de
um romance é preciso definir tudo: estrutura, tom, estilo, longitude, e
às vezes até o caráter de algum personagem. O resto é o prazer de
escrever, o mais íntimo e solitário que se possa imaginar, e se a gente
não fica corrigindo o livro pelo resto da vida é porque o mesmo rigor de
ferro que faz falta para começá-lo se impõe na hora de terminá-lo. O
conto, por sua vez, não tem princípio nem fim: anda ou desanda”.
Anda ou desanda: impossível achar melhor descrição para a
perigosa elegância, a tensa suavidade, o exatíssimo pulo no abismo que o
conto – diferente da mera anedota – exige. Se cada relato curto, para
funcionar, deve ter a justeza criativa de uma acrobacia, então um livro
de contos é formado por uma série encadeada de saltos mortais. Por
outro lado, não creio que precisemos levar muito longe esse debate
laboral: ele baseia-se, enfim, no pressuposto imperfeito de que a
relativa dificuldade em se escrever um texto deva ser o fator crucial na
hora de julgá-lo. A acreditarmos em sua Psicologia da Composição,
Edgar Allan Poe expelia dolorosamente cada linha de seus textos, como
quem comete uma violência meticulosa contra a própria alma; o
bem-aventurado Lorde Dunsany, por outro lado, afirmava entregar-se ao
chamado da escrita sem preocupação ou planejamento, no pitoresco
intervalo de suas atividades de cavalheiro rural, jamais reescrevendo
uma única frase; de toda maneira, por que a aspereza ou a suavidade
desses métodos deveriam alterar minha apreciação de “Um coração delator”
ou “Provável aventura de três literatos”? O Espírito sopra onde quer,
como disse o evangelista: as ficções valem pelo que são, e não pelo
percentual de dor que acrescentaram ao mundo no momento de serem
produzidas. Porque, no momento da leitura, o que imediatamente interessa
não é saber se o relato foi escrito entre goles de grogue ou entre
escarros de tísico. O que importa é saber se ele anda ou desanda.
Vamos agora àquela que talvez seja a
acusação mais injusta ao relato curto: a de que ele não pode gerar no
leitor uma experiência tão profunda quanto a do romance. Ora, sucede que
todo conto – para que ande e arda com a pungente sensação da vida –
deve sugerir, em sua brevidade, a vastidão de uma existência imaginada.
Na relação que os contos de um mesmo autor estabelecem entre si, há a
possibilidade de leituras eternamente renováveis: pode ser que todos se
passem em um mesmo mundo ficcional; pode ser que cada um exista em sua
própria esfera; ou pode ser que representem universos adjacentes,
comunicando-se por vias oblíquas e capilares. Trata-se, enfim, de uma
leitura diferente – não inferior ou superior – à que experimentamos com a
narrativa longa; e poderíamos até concordar com o crítico peruano José
Miguel Oviedo quando ele diz: “pelo rigor e pela intensidade de sua
linguagem, o conto está mais próximo da poesia que do romance”.
A César o que é de César, portanto, e ao conto o que é do conto: não
um preparativo, não um treinamento, não um arrabalde, mas um dos cimos
mais elevados na arte de narrar. E nada do que aqui vai dito implica em
desmerecer o romance – até porque, admito, também estou escrevendo um.
José Francisco Botelho é escritor, jornalista e tradutor. Sua coletânea de contos A árvore que falava aramaico foi publicada pela editora Zouk em 2011.
Fonte aqui
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