De uma leitora de Curitiba, Palmira G., veio a pergunta que hoje
respondo com especial carinho (ela lecionou Português durante quarenta anos, e,
mesmo aposentada, nunca deixou de ensinar o amor ao idioma aos filhos e aos
netos): “Sempre que eles têm dúvida, recorrem a mim, mas dessa vez eu fiquei
devendo: minha neta mostrou uma notícia que fala de uma xeica que veio nos visitar. Isso existe,
professor? O senhor não acha horrível?”. Acho horrível, sim, dona Palmira, mas
se a senhora acompanhar minha explicação, verá que existe uma hipótese muito,
mas muito pior.
Vamos começar com sheik, termo de origem
árabe que serve para designar uma autoridade cuja gradação pode ir do simples
chefe de clã ou tribo até chegar a um príncipe ou mesmo a um rei. Em vários
países islâmicos ― e, em especial, nos Emirados Árabes ―, as mulheres da mesma
hieraquia recebem o título desheikha.
A notícia que a senhora leu seguramente devia tratar da sheikha Mozah bint Nasser Al Missned, esposa
do emir do Catar, que esteve no Brasil no ano que acabamos de encerrar.
Como o Árabe usa um alfabeto que não é o romano, o vocábulo, ao
ingressar no Ocidente, foi transliterado das mais diferentes maneiras: jeque (Esp.), sceicco (It.), Scheich (Al.), cheik (Fr.), sheikh (ou sheik, as preferidas do Inglês,
embora o portentoso Oxford English Dictionary registre mais outras dezenove
variantes). No Português, como não poderia deixar de ser, a forma tradicional
sempre foi xeque (adotamos
sempre a letra X para essas transliterações: xampu, xerife, xarope, Xerazade).
Desde o séc. 16, as páginas de Camões, de João de Barros e de
Fernão Mendes Pinto estão repletas de xeques,
e assim vivemos muito bem até que Hollywood (e depois a rede Globo) puseram em
voga por estas bandas o sheik do Inglês. Nos anos 20, as brasileiras
suspiravam quando Rodolfo Valentino, o eternolatin
lover, corria pelo deserto, com o albornoz ao vento, nos filmes O
Sheik e O
Filho do Sheik; quatro décadas depois, nos anos 60, foi a vez
da TV brasileira reaproveitar o cenário “romântico” do deserto para lançar a
novela O Sheik de Agadir, que
fez um grande sucesso na época. Por influência direta dessa forma inglesa,
terminou surgindo a variante xeique, menos usada
mas também registrada nos bons dicionários.
Agora a senhora vai me entender: a esposa do emir de Catar vem
ao Brasil; o repórter, no que fez muito bem, não quer usar a forma inglesa, com
o seu exótico SH e, pior ainda, com o KH,
cacófato próprio para piada. O que faz ele? Vai ao dicionário e encontra duas
opções, xeque ou xeique. Como se trata,
porém, de uma dama, ele sabe que precisa usar o vocábulo no feminino. E aí?
Existe outra saída? A senhora terá de concordar que, afinal, até que xeica não é tão horrível assim…
(Do blog Sua Língua,
professor Cláudio Moreno, acesso em 16/02/2015)
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