A discussão em torno do aborto no Brasil não escapa à lamentação comum que envolve todo o campo da ética nos dias atuais. Enquanto a reflexão não avança, o grito da indignação moral faz pose de suficiência ética. Garante-se com ele o lucro moral da Igreja e de todas as instituições conservadoras. A questão do aborto é uma das mais exploradas na busca da mais-valia moral que serve para reforçar o poder das instituições. Briga-se hoje por argumentos, e os que lutam contra o aborto temem que surja o argumento mais poderoso, aquele que não se esconde atrás da mera afirmação em contrário, mas que expõe seus fundamentos. O perigo iminente é de que haja razão, sensibilidade e justiça para a prática do aborto. Daí teremos que ser responsáveis por ele. O que perderemos com isso?
A moral defendida pela Igreja ou qualquer outra instituição, ao evitar a reflexão, se coloca como detentora de um saber prévio que define o aborto como uma prática contra a vida. É claro que operam com o dogma, a pretensa verdade que sempre foi poder. Quem a usa sabe que basta repetir com firmeza, sempre haverá quem ouça e siga. Ignorantes e confusos põem-se de plantão sempre prontos a abrir as veias do bode expiatório cujo nome próprio desta vez é "mulheres".
Da distinção entre ética e moral
A ética depende de uma reflexão intelectual sobre a moral. Só a reflexão da ética contra o preconceito pode mover a sociedade de sua indolência atual neste campo. Com isso, não se pode sustentar que a moral deva ser lançada fora como resto incômodo, mas que é preciso questioná-la sempre no seu próprio processo de transformação histórico e geográfico. Assim evita-se a ação prêt-à-porter, na qual a liberdade está de fora, tanto quanto a responsabilidade que dela surge. O controle moral que se vale da incompetência intelectual que elevaria a questão à ética define que a moral é um amplo campo do poder. A ética, neste caso, é o campo não do poder como manipulação, mas do poder como potência de transformação.
Os argumentos contra o aborto arriscam-se no capcioso. Atêm-se, de um modo geral, a ideologias, posições afirmativas ou negativas e sempre grosseiras. A indignação moral, ainda que seja fundamental como espaço dos sentimentos e emoções que também têm vigência ética, não nos faz pensar no que fazemos e, com isso, não nos lança no território prático da ética. Pela moral, repetem-se as idéias prontas e os preconceitos. Aquilo que podemos chamar de ação ética é o campo onde a pergunta "O que estou fazendo?" é tão importante quanto a pergunta "Aonde quero chegar com o que faço?", o que implica medir conseqüências na tentativa de exercitar a própria liberdade.
Do valor da vida
O argumento do "valor da vida" talvez seja o único que valha a pena discutir diante da necessidade real do aborto na vida das mulheres. Se a questão é a vida ou não, de um ser humano ou não, é problema que pertence ao tema da vida como um valor. Se não se especifica o seu sentido, corre-se o risco de cair na abstração e no dogma ao falar em vida como palavra mágica ou hipóstase sagrada.
Para além da biologia, a vida é fato social e cultural e fato político. Saliente-se, para evitar sofismas e falácias, que ninguém que queira participar da discussão sobre a vida como um valor poderá de antemão dizer que a vida de nada vale ou que se pode livremente atentar contra a vida. Isso seria discutir tentando tirar o princípio que possibilita e exige a discussão da questão. Que a vida seja o maior valor pode se justificar metafisicamente: sem a vida, não há nada. A justificativa jurídica dela deriva: ninguém pode tratar o atentado contra a vida como um direito, pois aí estaria legalizada a guerra de todos contra todos, contra a qual surge todo o Direito como proteção latu sensu do cidadão pelo Estado.
Nesse ponto, o aborto poderia ser pensado como mero assassinato, assim como a miséria e a fome, sustentadas numa sociedade de ostentação e esbanjamento, poderiam ser tratadas como meros assassinatos coletivos, pois são também atentados à vida. São uma prova certeira do quanto a vida simplesmente vivida e não qualificada politicamente pode ser desimportante como valor em escala social. Mas se a questão é mais complexa no que concerne à miséria e à morte de inocentes pela miséria geral, quanto ao aborto a questão é ainda mais complexa. Certamente, algum conservador ou mesmo seu extremo fascista pode considerar que é melhor o aborto do que a violência urbana, que advém em grande medida da pobreza, mas a questão é ainda mais séria. Ela diz respeito ao nexo existente entre o fundamento biopolítico do poder que define o genocídio, a administração da miserabilidade, a ordem carcerária, a guerra, os doentes mentais ou terminais que podem ou não participar do universo político e, o que nos interessa aqui, o corpo das mulheres. O tema do aborto ainda não foi discutido neste sentido.
Da Bioética à Biopolítica
Quem pensa em termos de política social, em direito das mulheres num sentido amplo e, sobretudo, na precariedade das escolhas das mulheres desfavorecidas socialmente - as excluídas dos direitos - é, em geral, a favor do aborto como modo de solucionar questões práticas, de trazer menos sofrimento à vida das excluídas do direito e do poder. Ao se avaliar o aspecto biopolítico da política, a discussão expressa novos aspectos e, ainda que menos imediatamente pragmáticos, talvez sejam mais reveladores do preconceito arcaico, mas muito útil em termos patriarcais, que paira sobre o aborto.
Biopolítica é o termo usado por Michel Foucault para definir o cálculo que o poder faz sobre a vida. Aristóteles foi o pensador que definiu a política como território da vida pública, onde uma forma de vida qualificada exercitava sua excelência na forma de um corpo de homem, varão e cidadão, que deveria fazer ginástica para adaptar seu corpo às ações que decidem sobre a liberdade de um povo. Esse corpo apto para a guerra e para a vida qualificada (Bios) é que sustentava a vida na Pólis, por oposição à outra forma de vida, a mera vida ou vida nua, à qual Aristóteles denominou Zoé, a vida dos animais, das mulheres e dos escravos, que constituía a existência da esfera privada, o Oikos, da economia, das ações da mera subsistência, do cuidado dos animais, da educação das crianças, do parto e da maternidade.
Não há política no território oikonomico da casa, ali há administração da sobrevivência, ao contrário do mundo da política, onde o homem articula sua linguagem e sua voz, fazendo-se ouvir e valer no campo da argumentação. É ali que se cria o Direito, a democracia, a filosofia. As mulheres fazem parte deste mundo pela forma da exceção: pertencem à pólis enquanto - reclusas em seus lares, impedidas da vida política - não podem participar dela. Análogo é o estado atual dos pobres no Brasil ou de todos aqueles que de algum modo têm direitos não cumpridos sob a ordem legal de que sejam cumpridos.
A biopolítica é a decisão sobre o direito dos corpos e o direito à ocupação do espaço público sustentada sobre a decisão quanto ao corpo da mulher. O papel da mulher como procriadora foi definido usando um fator natural elevado à vigência cultural. Mera mistificação. Mero uso do poder ao qual se cede por pura falta de outro poder, de potência para escapar dele. Alguém pode se perguntar: "Mas como seria se esse não fosse o papel das mulheres?". A pergunta oculta já uma resposta: a "natureza feminina" dada na maternidade como se a cultura não fosse capaz de questioná-la e administrar sua vigência. Mistificação sutilíssima. Porém - que não assuste o argumento - a maternidade elevada a padrão feminino (como todo padrão feminino que é sempre construção de uma sociedade patriarcal) não vale mais que o sexo da prostituição nem que uma mulher nua numa revista de pornografia. Trata-se da mesma moeda, a da dominação das mulheres pela sua redução à mera vida, à corporeidade manipulável.
O que mais deve assustar a todos os que introjetaram a cultura sem chance de refletir sobre ela, aos que são escravos de sua própria ignorância, é que a soberania do corpo feminino é a mais radical de todas as possíveis. Ela escandaliza tanto quanto o suicídio. O aborto é uma prática de todas as culturas, as mais arcaicas e primitivas. Hoje o aborto, correto ou não, continua sendo um poder de decisão das mulheres sobre seu próprio corpo. Ele significa a opção de não parir. De escapar ao mito da maternidade. Ele é uma fissura no poder patriarcal que mistifica a maternidade. Se a maternidade, por sua vez, é o maior poder, o poder da criação e da vida, quem o administra é senhor do mundo. E ela sempre foi administrada por homens ou mulheres funcionárias do patriarcado.
A soberania feminina é o único ponto irredutível na questão do aborto. E se podemos dizer que as mulheres são responsáveis por isso, deixa-se em suas mãos a responsabilidadedo. Suportariam os homens a convivência com essa soberania que eliminaria a exceção na qual vivemos e, quiçá, inverteria o processo histórico?
Marcia Tiburi
* Publicado em no Caderno de Cultura do Jornal Zero Hora. Depois de ter assumido posição favorável à legalização do aborto no programa de TV "Saia Justa", a filósofa gaúcha Marcia Tiburi apresenta novos argumentos para o debate. Diz ela que o que mais perturba as pessoas é ter que reconhecer a soberania da mulher sobre o próprio corpo.