quinta-feira, 27 de junho de 2019

Ora, dezembro estava chegando, pensei, vou topar o convite; principalmente por causa do dinheiro; depois porque a barba é minha mesma, original de fábrica por assim dizer; finalmente porque vivo só, solidão-solidão, sozinho no mundo qual bicho do mato, conforme escreveu certa vez um poeta cujo nome é... quem consegue lembrar nome de poeta depois que aqueles psiquiatras da Santa Casa empanturram a gente de Rivotril Ludiomil Puta-Que-Pariu; reatando o fio da conversa, topei o convite; cheguei no primeiro dia e, meia horinha depois que me instalaram naquela poltrona vermelha ridícula, a maldita fila já parecia com a outra, aquela fila filha da mãe que eu enfrento todo mês pra receber a minha aposentadoria de merda; a criançada gritava sem parar como sempre, puh, cheguei a pensar em Herodes, ora veja; o calor estava insuportável como sempre, e a vontade de mijar vinha fora de hora também como sempre; no começo pensei em abandonar tudo, cair no oco do mundo, sair correndo gritando, não me chamo Nicolau titica nenhuma, meu nome é outro, sei lá qual, esqueci, psiquiatras da Santa Casa me empanturram de remédios, para os quintos todo mundo, principalmente esses compristas brocoiós; qual, fiz nada disso, foi só um lampejo de revolta, fiquei mudinho da Silva, não disse palavra; tanto, que ainda estou aqui até hoje, véspera de Natal, mas não me acostumei com esse senta levanta ininterrupto de menino menina, tanto faz; toda tarde é a mesma coisa sempre, blábláblá balinhas cafunés sons onomatopéicos; situação humilhante, santo Deus, oitenta e dois anos na cacunda, em vez de sombra água fresca varanda rede Sinatra na vitrola... sou um velho bisbórria, comento insosso e bebendo salgado, mas tenho palavra, vou até o fim; amanhã, último dia, quando chegar em casa tiro de vez estas botas apertadas, este chapeuzinho ridículo, esta calça horrorosa, este cinturão jeca, esta barba grotesca e este travesseiro encharcado; travesseiro sim, barriga falsa, tenho apenas sessenta quilos; ufa, falei demais, licença amigo, agora que esvaziei a bexiga vou sentar mais uma hora naquela poltrona vermelha ridícula, ih, mijei nas calças como sempre, diacho.

Evandro Affonso Ferreira

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