Enquanto a maioria dos países do
mundo enfrenta problemas de superlotação no sistema carcerário, a
Holanda vive a situação oposta: gente de menos para trancafiar. Nos
últimos anos, 19 prisões foram fechadas e mais deverão ser desativadas
em 2017, obedecendo a um decréscimo agudo da população carcerária. Mas
há quem veja nisso um problema.
O cheiro de cebolas fritas deixa a
cozinha e se espalha pelo pavilhão. Detentos estão preparando o jantar.
Um deles, usando uma longa faca, corta legumes.
"Tive seis anos de treino, então só posso melhorar", brinca ele.
O prisioneiro fala alto, porque a faca está presa a uma longa corrente presa à bancada em que trabalha.
"Eles
não podem carregar a faca por aí", explica Jan Roelof van der Spoel,
vice-diretor da prisão de segurança máxima de Norgerhaven, no norte da
Holanda, que tem capacidade para 243 detentos.
"Mas os detentos podem pegar emprestadas pequenas facas de cozinha.
Para isso, precisam deixar conosco sua identificação para que possamos
saber quem está com o que".
Alguns dos homens em Norgerhaven
cumprem sentenças por crimes violentos, então pode parecer algo perigoso
deixá-los andar com facas pela prisão. Mas as aulas de culinária fazem
parte das iniciativas de reabilitação dos detentos.
"Aqui na Holanda, nós olhamos para o indivíduo. Se alguém tem um
problema com drogas, tratamos o vício. Se é agressivo, providenciamos
gestão da raiva. Se tem dívidas, oferecemos consultoria de finanças.
Tentamos remover o que realmente causou seu crime. É claro que o detento
ou a detenta precisam querer mudar, mas nosso método tem sido bastante
eficaz", explica Van der Spoel.
O diretor acrescenta que alguns
reincidentes normalmente recebem sentenças de dois anos e programas
personalizados de reabilitação. Menos de 10% voltam à prisão. Em países
como Reino Unido e EUA, por exemplo, cerca de 50% dos detentos cumprindo
pequenas penas voltam a ser presos nos primeiros dois anos após a
libertação (no Brasil, diversos estudos estimam que a taxa geral de
reincidência é de 70%).
Norgerhaven fica na cidade de Veenhuizen, onde também está situada
outra prisão de segurança máxima - Esserheem. Ambas contam com bastante
espaço. O pátio é do tamanho de quatro campos de futebol e têm
carvalhos, mesas de piquenique e redes vôlei.
Van der Spoel conta
que o ar fresco reduz o estresse tanto para detentos quanto guardas.
Detentos podem andar "a vontade por áreas comuns como biblioteca,
departamento médico e cantina, e essa autonomia os ajuda na readaptação à
vida em liberdade.
Não poderia ser uma situação mais diferente de 10 anos atrás, quando a
Holanda tinha uma das maiores populações carcerárias da Europa. Hoje, a
proporção é de 57 pessoas por cada 100 mil habitantes, comparada a 148
por 100 mil no Reino Unido e 193 no Brasil.
Mas os programas de
reabilitação não são a única razão para o declínio de 43% no número de
pessoas atrás das grades na Holanda - que era de 14.468 em 2005 e caiu
para 8.245 em 2015.
O ano de 2005, por sinal, foi o auge da
população carcerária e especialistas acreditam que o salto se deu ao
aumento na segurança do principal aeroporto de Amsterdã e a consequente
explosão na prisão de "mulas" carregando cocaína. Mas, como explica
Pauline Schuyt, professora de direito criminal, a polícia mudou suas
prioridades.
"Eles mudaram o foco das drogas para concentrar esforços no combate ao tráfico humano e ao terrorismo", explica.
Juízes
holandeses também vêm aplicando cada vez mais penas alternativas à
prisão, como trabalhos comunitários, multas e monitoramento eletrônico.
A diretora do serviço penitenciário da Holanda, Angeline van Dijk,
diz que o encarceramento tem se tornado algo mais aplicado para casos de
criminosos de alta periculosidade ou para detentos em situação
vulnerável, que podem se beneficiar dos programas disponíveis.
"Às
vezes é melhor que pessoas fiquem em seus empregos e suas famílias, e
que cumpram a pena de outra forma", explica Van Dijk.
"Como temos penas mais curtas e uma taxa de criminalidade em queda, isso está levando a celas vazias".
Oficialmente,
crimes caíram 25% na Holanda desde 2008, mas há quem alegue que isso é
resultado de maiores problemas em registrar queixas - um efeito
colateral do fechamento de delegacias, como parte de pacotes de cortes
de gastos públicos.
Ex-diretora de prisão e hoje porta-voz para assuntos de Justiça do
partido de oposição Apelo Democrático Cristão, Madeleine Van Toorenburg
diz que a escassez de prisioneiros está ligada a uma espécie de
impunidade.
"A polícia está sobrecarregada e não consegue lidar com seu trabalho. A resposta do governo é fechar prisões", critica.
E
agentes penitenciários tampouco se dizem satisfeitos com o que chamam
de instabilidade profissional. Frans Carbo, líder sindical, diz que
agentes estão frustrados e que a presente situação desestimula a
renovação da força de trabalho.
"Os jovens não querem trabalhar
no sistema penitenciário porque não há mais futuro na profissão. Você
nunca sabe quando sua prisão será fechada".
As prisões desativadas
são normalmente convertidas em centros de triagem para refugiados e
oferecem uma oportunidade de trabalho para guardas que perderam o
emprego. Mas uma unidade nas imediações de Amsterdã foi convertida em um
hotel de luxo.
Outra solução encontrada pelo governo para lidar com celas ociosas
foi alugar espaço para prisioneiros de países com problemas de lotação,
como a vizinha Bélgica e a Noruega.
Norgerhaven, por exemplo,
recebe prisioneiros noruegueses, a mesma nacionalidade do novo diretor
da unidade Karl Hillesland. Mas os guardas são todos holandeses. O
curioso é que o sistema penal norueguês é mais liberal que o holandês.
Prisioneiros podem dar entrevistas e assistir aos DVDs que quiserem,
porque o princípio básico é do da normalização - a vida na prisão deve
ser o máximo possível parecida com a do mundo lá fora para ajudar a
reintegração.
"Fazemos as coisas de maneiras diferentes. Aqui (na Holanda), tomamos
ações disciplinares assim que um prisioneiro quebra as regras, ao passo
que os noruegueses primeiro abrem inquérito e depois tomam
providências. Esse estilo confundiu os guardas no começo", diz Van der
Spoel.
"Mas, no geral, compartilhamos os mesmos valores básicos sobre como administrar uma prisão", diz Hillesland.
O
diretor diz que alguns prisioneiros do sistema norueguês foram
transferidos unilateralmente para a Holanda, mas que a maioria se
voluntariou porque artigos como tabaco, por exemplo, são mais baratos na
Holanda.
Mas a transferência criou problemas para parentes, que precisam
custear do próprio bolso visitas à prisão - o que pode custar mais de R$
2 mil em passagem aérea e acomodação. Por isso, Norgerhaven hoje contra
com uma "sala de Skype". Mas a maioria dos prisioneiros "importados" é
composta de estrangeiros que jã não viam suas famílias em pessoas quando
estavam atrás das grades na Noruega.
O operário polonês Michael é
um exemplo. Ele usa a internet para ver a esposa e os quatro filhos,
algo que não tinha na Noruega - os parentes estão na Polônia.
"Minha
mulher está ocupada com a tarefa de cuidar das crianças e o trabalho.
Então optei por vir para esta prisão para que não apenas ouvisse a voz
da minha família. É difícil (controlar a emoção) depois de falar com
eles, mas é melhor que nada", explica Michael.
Veenhuizen também
esconde um passado sombrio e bem menos progressista que o do atual
sistema penitenciário: um reformatório que ficou conhecido como a
"Sibéria Holandesa" e que foi usado para a internação forçada de
mendigos, órfãos e outros marginalizados no século 19. E que funcionou
até os anos 70.
De acordo com demógrafos, pelo menos um milhão
dos 17 milhões de holandeses hoje vivos descende de alguém "exilado" em
Veenhuizen.
Hoje, o prédio do reformatório abriga o Museu Penitenciário.
BBC Brasil
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