Não digo que "O Pai dos Burros" (Arquipélago Editorial) é daqueles "livros que não se consegue largar" porque isso pode soar como ofensa, ou no mínimo uma afronta ao autor, o jornalista Humberto Werneck. É que esse mineiro, que também assina "O santo sujo - A vida de Jayme Ovale" (CosacNaify), eleito pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) como a melhor biografia de 2008, se ocupa há quase 40 anos em anotar, guardar e quebrar ao meio frases feitas como a acima citada. Dessa pesquisa saiu o dicionário, com mais de 4.500 expressões espalhadas pelos 2.000 verbetes da obra, apresentados em ordem alfabética a partir da palavra-chave. Pérolas que a gente escuta (e fala) todo dia como "façanha sem precedentes" ou "múltipla faceta" nos faz sentir meio burrinho mesmo. Mas, graças a Deus, protegido pelo pai.
A obsessão do autor em juntar essas fórmulas prontas (anotava em guardanapo, maço de cigarro ou no que estivesse ao alcance) é a prova de uma "preocupação sadia" (essa pode entrar na próxima edição do livro!) com a linguagem. Humberto é reconhecidamente um dos melhores textos do jornalismo brasileiro. E é famoso, justamente, por retorcer a frase-feita, dando-lhe um sentido original. Porque dizer que a vida está de "vento em popa" não tem o menor charme, mas o contrário, de que está de "vento em proa" é mesmo bem interessante.
Para chegar até "O Pai dos Burros", Humberto vem num longo caminho de fórmulas prontas. Leu "Dicionário das idéias feitas", de Gustave Flaubert (1952), e "Lugares-comuns", de Fernando Sabino (1974). Passou um bom tempo da vida, e talvez ainda passe, obcecado em catalogar frases e mais frases. "Inclui coisas novas até o último minuto possível no processo de edição e já tenho novas anotadas", diz o autor.
Seu olhar está tão treinado que Humberto identifica fácil o nascimento de um lugar-comum. Afinal, "as expressões só se gastaram por terem sido, um dia, luminosos lugares-incomuns, a partir daí repetidos até a exaustão semântica". Ele diz, por exemplo, que até vai sua memória os "porões da ditadura" e os "anos de chumbo" que a gente lê tanto por ai são criações do jornalista Augusto Nunes, lá pelos anos 1970, na revista Veja. "O problema é que a imitação é sempre tão menos talentosa", diz Humberto, que lança na entrevista a seguir o convite à reciclagem das palavras.
UOL: Por que colecionar lugares-comuns?
Humberto Werneck : Sempre fui obcecado pela eficiência da linguagem, e radicalizei quando fui trabalhar no "Jornal da Tarde", de 1970 a 1973. Havia lá uma preocupação extrema com o texto. A gente fazia o que se chama hoje jornalismo literário. Era preciso evitar expressões que, de tão batidas, perderam o sentido. O papel do jornalista é mostrar o novo, e não tem cabimento tentar dizer o novo com linguagem velha. Para passar a informação, é preciso seduzir o leitor, e linguagem velha não seduz. Eu não tenho religião, mas tenho uma padroeira: Sherazade, a moça que salvou o pescoço porque soube seduzir o sultão com suas palavras durante 1001 noites. Nem tanto pelas histórias que contava, mas pelo modo de contar. Quando o leitor me abandona no meio do texto, ele está me decapitando.
No prefácio você explica que uma frase só entra pro hall dos lugares-comuns porque um dia já foram incomuns.
Humberto Werneck : Sim, são coisas que foram novas e deixaram de ser. Como tenho um olho bom para defeitos (não necessariamente os meus, esses muitas vezes me escapam), comecei a tomar nota de lugares-comuns, sem saber bem para quê.
Qual foi a sua principal fonte?
Humberto Werneck : A imprensa. Mas no meu livro tem muitas expressões que ouvi por aí, às vezes em circunstâncias bizarras - até mesmo em velório, acredita? Na época, tinha umas "febres", acordava no meio da noite para anotar lugares-comuns. Às vezes o sentido do que estava lendo chegava a me escapar, tamanha a preocupação em caçar fórmulas prontas.
E como pessoalmente você se relaciona com os lugares-comuns?
Humberto Werneck : Falando, certamente digo lugares-comuns, mas ao escrever procuro evitar. O uso do lugar-comum denota preguiça, falta de imaginação e insegurança. É escolher a facilidade do caminho já trilhado. É usar o velho tal qual, sem a inventividade e a graça que os brechós verbais nos oferecem.
Então há um modo de usar bem o lugar-comum?
Humberto Werneck : O livro não tem caráter policial. Não é um "não pode", é um "se liga". Defendo o uso criativo do lugar-comum. A proposta é de reciclagem. Desarticular o comum e, como num Lego, fazer outra figurinha com ele. Criar lugares-incomuns.
Algumas pérolas
"O mundo todo não vale o meu lar"
"Jurar de pés juntos"
"Num futuro próximo"
"O futebol é uma caixinha de surpresas"
"Ter um grande futuro pela frente"
"Aproveitar o ensejo"
"Com a voz embargada pela emoção"
"A vida é feita de pequenas coisas"
"Por N motivos"
"O Pai dos Burros - Dicionário de Lugares-Comuns e Frases Feitas
Autor: Humberto Werneck
Arquipélago Editorial
205 páginas
Preço sugerido: R$ 29,90
Lançamento
São Paulo: terça, dia 25/08, às 18h30, na Livraria Cultura da Avenida Paulista
01/09 - Porto Alegre
15/09 - Rio de Janeiro
19/09 - Belo Horizonte
Fonte:
MARTA BARBOSA
Colaboração para o UOL
A obsessão do autor em juntar essas fórmulas prontas (anotava em guardanapo, maço de cigarro ou no que estivesse ao alcance) é a prova de uma "preocupação sadia" (essa pode entrar na próxima edição do livro!) com a linguagem. Humberto é reconhecidamente um dos melhores textos do jornalismo brasileiro. E é famoso, justamente, por retorcer a frase-feita, dando-lhe um sentido original. Porque dizer que a vida está de "vento em popa" não tem o menor charme, mas o contrário, de que está de "vento em proa" é mesmo bem interessante.
Para chegar até "O Pai dos Burros", Humberto vem num longo caminho de fórmulas prontas. Leu "Dicionário das idéias feitas", de Gustave Flaubert (1952), e "Lugares-comuns", de Fernando Sabino (1974). Passou um bom tempo da vida, e talvez ainda passe, obcecado em catalogar frases e mais frases. "Inclui coisas novas até o último minuto possível no processo de edição e já tenho novas anotadas", diz o autor.
Seu olhar está tão treinado que Humberto identifica fácil o nascimento de um lugar-comum. Afinal, "as expressões só se gastaram por terem sido, um dia, luminosos lugares-incomuns, a partir daí repetidos até a exaustão semântica". Ele diz, por exemplo, que até vai sua memória os "porões da ditadura" e os "anos de chumbo" que a gente lê tanto por ai são criações do jornalista Augusto Nunes, lá pelos anos 1970, na revista Veja. "O problema é que a imitação é sempre tão menos talentosa", diz Humberto, que lança na entrevista a seguir o convite à reciclagem das palavras.
UOL: Por que colecionar lugares-comuns?
Humberto Werneck : Sempre fui obcecado pela eficiência da linguagem, e radicalizei quando fui trabalhar no "Jornal da Tarde", de 1970 a 1973. Havia lá uma preocupação extrema com o texto. A gente fazia o que se chama hoje jornalismo literário. Era preciso evitar expressões que, de tão batidas, perderam o sentido. O papel do jornalista é mostrar o novo, e não tem cabimento tentar dizer o novo com linguagem velha. Para passar a informação, é preciso seduzir o leitor, e linguagem velha não seduz. Eu não tenho religião, mas tenho uma padroeira: Sherazade, a moça que salvou o pescoço porque soube seduzir o sultão com suas palavras durante 1001 noites. Nem tanto pelas histórias que contava, mas pelo modo de contar. Quando o leitor me abandona no meio do texto, ele está me decapitando.
No prefácio você explica que uma frase só entra pro hall dos lugares-comuns porque um dia já foram incomuns.
Humberto Werneck : Sim, são coisas que foram novas e deixaram de ser. Como tenho um olho bom para defeitos (não necessariamente os meus, esses muitas vezes me escapam), comecei a tomar nota de lugares-comuns, sem saber bem para quê.
Qual foi a sua principal fonte?
Humberto Werneck : A imprensa. Mas no meu livro tem muitas expressões que ouvi por aí, às vezes em circunstâncias bizarras - até mesmo em velório, acredita? Na época, tinha umas "febres", acordava no meio da noite para anotar lugares-comuns. Às vezes o sentido do que estava lendo chegava a me escapar, tamanha a preocupação em caçar fórmulas prontas.
E como pessoalmente você se relaciona com os lugares-comuns?
Humberto Werneck : Falando, certamente digo lugares-comuns, mas ao escrever procuro evitar. O uso do lugar-comum denota preguiça, falta de imaginação e insegurança. É escolher a facilidade do caminho já trilhado. É usar o velho tal qual, sem a inventividade e a graça que os brechós verbais nos oferecem.
Então há um modo de usar bem o lugar-comum?
Humberto Werneck : O livro não tem caráter policial. Não é um "não pode", é um "se liga". Defendo o uso criativo do lugar-comum. A proposta é de reciclagem. Desarticular o comum e, como num Lego, fazer outra figurinha com ele. Criar lugares-incomuns.
Algumas pérolas
"O mundo todo não vale o meu lar"
"Jurar de pés juntos"
"Num futuro próximo"
"O futebol é uma caixinha de surpresas"
"Ter um grande futuro pela frente"
"Aproveitar o ensejo"
"Com a voz embargada pela emoção"
"A vida é feita de pequenas coisas"
"Por N motivos"
"O Pai dos Burros - Dicionário de Lugares-Comuns e Frases Feitas
Autor: Humberto Werneck
Arquipélago Editorial
205 páginas
Preço sugerido: R$ 29,90
Lançamento
São Paulo: terça, dia 25/08, às 18h30, na Livraria Cultura da Avenida Paulista
01/09 - Porto Alegre
15/09 - Rio de Janeiro
19/09 - Belo Horizonte
Fonte:
MARTA BARBOSA
Colaboração para o UOL
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