O conto de Kafka Diante da lei narra a história de um homem que vendo uma porta aberta e nela desejando entrar, não pode fazê-lo. Um guardião impede sua passagem. O homem que proíbe vive diante da porta como o homem que é proibido. O fato de que a porta esteja aberta, e não fechada, desloca o significado do dentro e do fora. O que, de fato, separa os campos? O que separa o homem que pratica e o que sofre a proibição? A proibição logo desenvolve sua estranheza: a de uma porta aberta onde não se pode entrar. O personagem de Kafka pensa estar fora da porta, quando, na verdade, situa-se dentro, já que não há real separação de territórios. Tudo não apenas está, mas “é” dentro. Não se pode entrar porque não se pode sair. E um outro motivo define para o personagem sua liberdade sitiada: a porta sempre esteve aberta para ele como afirma o guardião ao final da dramática e onírica situação. O que está dentro impede que o homem entre, o que está fora impede que o homem saia. A formulação sugere um espelho. A imagem metálica revela um mundo inacessível ainda que acessível pelo visível, um mundo que está dentro e não está dentro do espelho. O aberto está fechado. O fechado está aberto. Pertencemos social e historicamente à estrutura deste paradoxo. Também nós temos as nossas portas abertas fechadas. Se a porta que vemos, com olhos de seres humanos, aberta e fechada ao mesmo tempo, é a da lei como alguns interpretam a história, sabemos bem que seu nome são as regras da vida. Os limites que nos frustram e que nos tornam adoradores de ícones de plástico que prometem salvar-nos a cada momento do enfrentamento com o absurdo. É nossa identidade, a imagem que temos de nós, sempre diferente do que somos, que nos persegue e que esperamos compor por inteiro. Na busca por recompor os frangalhos da identidade, do saber de si, ficamos eternamente parados diante das portas cheia de ofertas proibidas, vitrines de um gozo de si sempre transferível à perversão dos objetos. Portas? Riqueza, felicidade, conhecimento, liberdade? Quem não quer abri-las? As portas da vida estão sempre abertas para todos no discurso cínico; no discurso dos pessimistas abertas para ninguém. Entre a democracia e a injustiça, melhor ponderar a abertura para poucos. Há quem se salve, exceção que confirma a regra e que na conhecemos. A porta da lei é a do simbólico peso da vida com suas imposições que tanto conhecemos na pele (como no outro igualmente exemplar conto de Kafka, A Colônia Penal, em que a tortura do condenado consiste em receber a escrita da sentença na própria pele). Não sabemos jamais o segredo da fechadura que lhe abre. O homem de Kafka preso no absurdo somos nós. E isso não é mero existencialismo, mas um nó que deveríamos desatar se saber o que é a vida realmente nos interessasse.O infeliz kafkiano encontra-se na situação absurda de precisar entrar e, ao mesmo tempo, por estar sempre dentro, não poder entrar, nem, ao contrário, por, do mesmo modo, estar fora, não poder sair. Se pudesse realmente sair ou entrar abandonaria a posição do desejo de “quiçá, um dia, atravessar a porta”. O personagem, a notória figura do pobre coitado, precisa amargar seu fracasso. Sem saber, claro, que o fracasso lhe possui. E que a pertença diz respeito a séculos de civilização, jogos de poder que fizeram da condição humana, mistério da covardia dos fracos diante da barbárie dos fortes. A história da condição humana, o que Freud tratou nos termos da filogenética, é de cada um, momento ontogenético inexorável, herança que não se escolhe. Mais complexo que isso, o sujeito moderno, aquele que foi investido do poder da consciência de si, aquele que deve assumir a responsabilidade para não ser culpado, com seu mísero trunfo de um saber nunca sabido que o isenta ainda que o humanize, herdou, todavia, o ideal da liberdade, da igualdade e da fraternidade, a idéia burguesa de que o mundo poderia, portanto, ser diferente e que, cidadão, deveria solucionar os problemas urgentes da sociedade onde vive. Mas preferiu pensar primeiro em si mesmo. Na hora de pensar além de si, o que ele encontra é a impotência em fazer o que sabe que deveria fazer. E, por isso, ele se pergunta: o que fazer? Pergunta que é o nome próprio da inércia.O conto revelador fala do desejo irrealizável. Quem não o conhece? Quem não gostaria de realizar os próprios desejos? Mas, a vermo-nos na pele de tal sujeito, identificados à medula com uma indecisão que lhe parece fatal e sobre a qual ele nada sabe, nem mais sabemos o que é “nosso desejo”, “meu desejo” e, para fugir da inação que aparece como petrificação diante da face de Górgona que é o desejo quando se mostra por inteiro, prefere escudos protetores, espelhos como as artimanhas de Perseu contra o monstro cuja cabeça derrubou. De que fujo quando me torno inerte, passivo, acomodado? Não é difícil imaginar que a face da Górgona petrifica pelo medo. O medo diante da cabeça da Medusa, é o que se revela também para o homem diante da porta aberta. O medo tem a estrutura da experiência do paradoxo. A inação, mais que peculiar – inevitável - que caracteriza o personagem é o fundo obscuro do medo que precisamos entender. O conto de Kafka, texto cuja luminosidade não tem igual na história da literatura, expõe não o medo como habitualmente o entendemos, como evitação do mal por vir, mas como lençol que tapa o horror que temos do próprio medo. Evitamos sentir medo porque é do medo que temos medo. E o sentimos. Agimos em nome de suas causas, todavia, trancando portas e janelas, fazendo exames médicos, tornando-nos mansos em nossos trabalhos e relacionamentos. Tornamo-nos livres, ricos, inteligentes, bons cidadãos, homens de bem, poderosos, cínicos, burocratas, funcionários, enganadores. Nossas ações são proporcionais à pluralidade do medo e à vontade de imperar sobre ele. Mas estamos dentro dele e não o conhecemos.Da grande árvore do medo somos os frutos. Mais do que a viver sob sua sombra, somos feitos à sua sombra. A casa onde todos moramos trancafiados, tentativa de dominar pela domesticação a porta sempre aberta do medo, é também ela apenas um lado da abertura cruel na qual se transformou a sociedade. De um lado e de outro, vida pública e privada, casa e rua, poderosos e sem poder, os combatentes de uma guerra de todos contra todos que não informa sobre seu fim. Fechar a porta bastaria para reordenar a vida? O medo não é apenas o sentimento aversivo de algo que nos ameaça em nossa integridade física, moral ou psíquica. O medo, que em tantas línguas é sinônimo de angústia, é conhecido como a sensação que alguém, animal ou humano, tem do perigo iminente. Neste nível o medo apenas me faz fugir do que temo. Porém, a impossibilidade de fugir de algo por situar-se dentro do que provoca a ameaça é o véu mais profundo do medo. O medo está em mim, mas estou antes eu dentro do medo como possibilidade da existência, sua forma. O medo é invólucro. Se é possível fugir à ameaça do que pode me assaltar, cão feroz ou o bandido, é a proximidade do ataque que impõe a revelação do seu fundo: o que vem em minha direção me põe em estado de choque. O efeito do medo é mais que a calma inércia, a tormentosa paralisia. Elevada à norma cega da cultura ela define que cada um deve ocupar-se primeiro de salvar a si mesmo, se isto, claro, ainda for possível. Jean Delumeau, o historiador do medo, conta que a humanidade passou por diversos medos, da peste, do diabo, das mulheres, da morte violenta. E que, na tradição, o medo é um sentimento dos pobres. Os que não têm poder para garantir a vida, que ameaçados não vêem como safar-se senão pelo apagamento ou pelo mimetismo, não existem fora do sustentáculo do medo. O medo é a base das sociedades autoritárias, sejam pequenos grupos, sejam famílias ou grandes instituições. Disfarçadas na ordem democrática o medo não é eliminado como impureza que se vai com água ou psicanálise. Sua resistência é a do alicerce. Sempre coletivo, o medo é o que agrega as massas, é o que produz a lei, o Estado e a ética como modo da convivência pacífica. Mesmo a estética é a perene criação de imagem para superar a morte. Luta contra o medo nada banal.Eu morri de medo de insetos até quase trinta anos. Fobia? Pânico? Pavor? Terror? Angústia? Era qualquer forma de medo que me fazia fugir e, na fuga continuada que durou anos a perder de vista, de tanto escapar, acabou por ser esquecido. Quando comecei a desenhar estas imagens que se parecem, no todo das formas orgânicas, com insetos, lembrei do meu antigo medo, que algo do meu passado infantil, onírico e absolutamente pessoal estava ainda vivo e latente. E tinha criado asas e tentáculos sutilíssimos. E que tinha criado uma forma inofensiva e sobre a qual meu traço, um mero traço, podia imperar absoluto. Hoje, sou capaz de pegar um inseto na mão. Depois de mais de 500 seres criados no papel, vivo de bem com meu bestiário, meu laboratório de ilusões. A porta para sair ou entrar virou apenas moldura.
Marcia Tiburi
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