domingo, 27 de fevereiro de 2022
Outunal
Caem as folhas mortas sobre o lago!
Na penumbra outunal, não sei quem tece
As rendas do silêncio...Olha, anoitece!
- Brumas longínquas do País Vago...
Veludos a ondear...Mistério mago...
Encantamento...A hora que não esquece,
A luz que a pouco e pouco desfalece,
Que lança em mim a bênção dum afago...
Outono dos crepúsculos doirados,
De púrpuras, damascos e brocados!
- Vestes a Terra inteira de esplendor!
Outono das tardinhas silenciosas,
Das magníficas noites voluptuosas
Em que soluço a delirar de amor...
Florbela Espanca, in: Charneca Em Flor
sábado, 26 de fevereiro de 2022
Tô com dor de garganta, sintomas gripais. Fui no Postinho. Resultado do exame COVID sai em 3 dias. Fico em casa, por enquanto. Pra aliviar o coração, fiz um teste rápido de antígeno. Não reagente. Deve ser mesmo só a garganta. Mas o que eu quero contar é outra coisa.
No posto de Saúde, esperando minha vez, a atendente chama uma certa "Rosicler". Opa!
Eu tinha meus 14 anos, estudava no colégio Polivalente, em Viamão. Lembro que, no meio do ano, do nada, apareceu uma aluna nova! Rosicler. Olha! Era uma moreninha linda demais, olhos verdes, bem verdes, foi uma sensação, a tal Rosicler. Além de linda, ela usava um abrigo da Adidas. Três listras. Em Viamão, século passado, aquele abrigo era o sonho de consumo de todo estudante! Além do mais, o agasalho não era o tradicional azul (o que já seria o máximo), mas um verde musgo, que ornava perfeitamente com os olhos verdes da Rosicler. Uau! Desnecessário dizer que todos se apaixonaram pela menina, que, óbvio, nos ignorava por completo. Passados mais de 40 anos, como podem ver, não esqueci a Rosicler...
Voltando ao Posto de Saúde. A atendente chama uma certa Rosicler. Fico atento. Será? A mulher que levanta é morena. Ó! Ela não parece a gatinha do colégio. Pudera, passaram-se 4 décadas. Ela parece ter a minha idade. Ó! Pode ser ela! A mulher está obesa, veste uma bermuda legging floriada e chinelos de borracha. Nem sinal do logotipo Adidas. Bom, sei lá, a crise. A mulher move-se com dificuldade, tem um problema em uma perna, eu acho. Ela está à minha frente, vai ao encontro da atendente. Não consigo ver a cor dos olhos: serão verdes? Bem verdes? O cabelo desgrenhado, os braços flácidos gesticulando para a atendente, a voz de taquara rachada. Meu Deus, o que o tempo fez com a Rosicler! O que o tempo fez comigo, que estou no mesmo Postinho, também calçando chinelos de borracha, calvo e com os braços também flácidos. A Rosicler, agora, está discutindo com a atendente, exigindo a presença de um médico, fala de um desgaste no quadril, penso nas minhas dores articulares, aqueles jovens do colégio Polivalente perderam-se no passado. Nada de abrigo Adidas, nada do meu cabelo caindo nos olhos. A Rosicler, ainda de costas para mim, roda a baiana, ameaça chamar a imprensa, a Rádio Gaúcha, sinto-me desconfortável, minha antiga paixão poderia, pelo menos, ter mantido a elegância... É quando ela dá a discussão com a atendente por encerrada e vira-se em minha direção. É quando, por fim, consigo olhar os seus olhos: Castanhos, opacos, nenhum brilho, nem sombra daquele verde estonteante. Não é a "minha" Rosicler!
A mesma atendente, pouco depois, enfia um enorme cotonete nas minhas narinas. Parece aborrecida. Não a culpo: o dia está quente, o Postinho cheio, pessoas desagradáveis como a falsa Rosicler... Haja paciência. Esse ainda será um ano difícil.
Mauro Castro
Cinco pragas
1
Balbino acordou antes de abrir os olhos. Foi despertado pelo barulho da chuva na calçada, o rocio gelado que se infiltrava pelos rasgões da manta, o ronco surdo e contínuo de um ônibus a resfolegar diante do semáforo. Encolheu mais o corpo, coçou as canelas, moveu a língua na boca ressecada, tentou pensar de novo no que estivera sonhando: era numa espécie de marcenaria, cheiro de serragem, um serrote, um botijão de vinho sem rótulo, a voz de alguém contando dinheiro. Virou o corpo para o outro lado, sentiu as coisinhas caminhando pelo couro cabeludo, aconchegou-se a si mesmo, passou a mão pela folha de jornal e sentiu por baixo dela as pedras portuguesas, geladas, como sempre. Despregou as pálpebras e soergueu a cabeça quando ouviu vozes; era um casal esperando o sinal abrir de novo para atravessar a rua. De longe ouviu se aproximando a voz metálica do alto-falante da kombi do ferro-velho, anunciando que comprava geladeira velha, máquina de lavar velha, ar condicionado velho, porta de alumínio velha, panela velha, motor de carro velho. Olhou para o lado, viu o plástico azul-claro ainda esticadinho, as revistas sem capa, as duas torneiras fazendo peso numa ponta, os dois cinzeiros na outra, os livros úmidos de orvalho, dois Sidney Sheldon, dois Jorge Amado, um Debord. O sinal abriu, o homem disse alguma coisa alegre e deu uma palmada de leve na bunda durinha da mulher, os dois atravessaram e sumiram. Balbino desistiu de tudo e pronunciou a frase proibida, que trazia de cor há tantos anos, a frase que dedicara ao mundo, e sobre o mundo começaram a cair gotas vermelhas, gotas pegajosas de um sangue escarlate, rubro, carmesim.
2
Amândio Carneiro, escriturário aposentado, 77 anos, viúvo, um dia criou coragem. Fez a barba, passou loção, vestiu uma camisa estampada, sentou na sala fingindo que lia uma revista. À aproximação de Dona Jucimara, 62 anos, sua diarista há três meses, exibiu para ela toda sua custosa dentadura e disse: “Ah, Dona Ju, não bote essa blusa não... Não bote não, que assim a senhora me tira do sério!...”, ao que ela o olhou de cima a baixo e disse: “Condenado, teu destino é um AVC”. Dito e feito.
3
Julinho Gouveia, 19 anos, ajeitou nervosamente o paletó, olhou em volta o salão repleto do Clube Aquático Cruznovense, passou a mão pelos cabelos, e dirigiu o olhar vagarosamente para uma mesa a dez metros de distância onde estava acomodada a família Cristaldi: Seu Adolfo, o bigodudo proprietário da charutaria local, sua esposa Dona Hermínia, empertigada e desafiadora, e a filha única Elzira, rosto de pétala, boca de morango, seiozinhos de manga-rosa, bem sentadinha e comportada em seu vestido branco de ombros à mostra, e com olhos que estavam à espera dos de Julinho, compreendendo-o, encorajando-o, mandando-lhe uma mensagem telepática que era ao mesmo tempo uma aceitação, um convite e um pedido de socorro. Julinho mexeu no nó da gravata com a ponta dos dedos, engoliu em seco, tomou dois goles de cuba-libre e ergueu-se. Atravessou aquele espaço sem nem perceber que estava se desviando dos garçons com bandejas e dos casais que se encaminhavam para o dancing ao som de Moonlight Serenade, tocada pela Orquestra do Maestro Josué. Chegando junto à mesa, fez o que acreditou ser uma curvatura respeitosa diante do casal idoso, e com um sorriso trêmulo para Elzira, perguntou: “Quer dançar?...” Sabe-se lá o que se passa na alma feminina; Julinho não saberá nunca, talvez, mas o fato é que Elzira lhe endereçou um sorriso altaneiro e indiferente, e disse: “Sinto muito, estou comprometida.” Julinho sentiu fugir-lhe o sangue do corpo, fez nova curvatura mecânica e retornou para a mesa, sem ver nada, sem enxergar nada, sem escutar coisa alguma, sem outro pensamento senão o maçarico de ódio e acetileno que ardia de vergonha em sua alma e que o fez murmurar com uma voz que não reconheceu como sua: “Pois eu quero que você morra no caritó, sua franga despenada.”
4
A vidraça da janela começava a clarear e Dona Nair, de olhos entreabertos, flutuava numa brisa, numa nuvem matutina de alfazema, quando o sono foi rasgado ao meio pela motosserra-trituradora do liquidificador da vizinha madrugadeira, Dona Olenka, em pleno despertar de sua obsessão por vitamina C. Ela estremeceu dos pés à cabeça, enquanto duas furadeiras-zumbidoras lhe perfuravam os tímpanos e convergiam para o centro dos miolos. Num repelão, sentou na cama, passou a vista pela quitinete cheia de vinis, de pôsteres, de plantas, de badulaques e quinquilharias, mas arrumadinha. Apoiou os cotovelos nos joelhos, suspirou fundo, e falou baixinho: “Ah, condenada dos infernos, cururu-têitêi, tomara que toda vez que tu ligar essa ingrizia leve um choque bem grande!...” Deu um suspiro fundo e ainda não o concluíra quando escutou um grito agudo, carregado de dor e de medo, e depois o estardalhaço de coisas desabando, coisas de vidro se espatifando tilintantes, e um rumor surdo de cadeira arrastada, um ou outro soluço. Levantou-se alarmada, hesitou, o peito palpitando de susto, levou à mão à boca quando percebeu a gravidade do que acabara de produzir. Nova hesitação, mas já foi com mãos firmes que agarrou o robe-de-chambre jogado na poltrona de vime, enfiou-se nele, abriu a porta, bateu na porta de serviço da vizinha. “Dona Olenka?... Dona Olenka?... Está tudo bem aí?...” Rumores confusos lá dentro e então a porta entreabriu uma fresta cautelosa, depois abriu-se toda e ela avistou o chão coberto por um lago de mamão com laranja, um esfregão, um rodo, e segurando o rodo, cravando nela as verrumas de dois olhos azuis como sabão-em-pó, Dona Olenka, desgrenhada mas viva, trêmula mas viva, enfiada num roupão-toalha que parecia ter sobrevivido a duas guerras mundiais. “Pois não?...” foi o que ela respondeu. “Desculpe... Aliás, bom dia... Ouvi um barulho, me assustei... A senhora está bem?...” Sem largar a quina da porta, Dona Olenka proferiu; “Estou, estou muito bem, obrigada. Bom dia.” Fechou a porta, ouviu os passos de Dona Nair se afastando e falou baixinho: “Estou bem porque meu santo é forte, sua bruxa hippie.”
5
Numa pausa no meio de uma estafante noite de trabalho, por volta das duas e 53 da madrugada, o contista Nesso de Vanja, depois de fumar o quarto beck diante do teclado e mergulhar na implosão fractal de um protetor de tela, sentiu-se transferido para um lugar onde havia lágrimas e ranger de dentes, e ali ele encarou a aparição que tinha a forma de um castiçal e tinha a forma de uma baleia, e a encarou sem medo, e exigiu tudo a que tinha direito sobre a Terra, exigiu flores, exigiu mulheres em flor, exigiu castelos e herdades, máquinas futuristas, e a adoração das multitudes. Um trovão e um relâmpago simultâneos o deixaram cego e surdo, mas não tão surdo que o impedisse de ouvir a voz indiferente, com uma nitidez metálica, que lhe anunciou: “Todos te elogiarão... mas ninguém te lerá”.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022
Frase
“Eu sou essa gente que se dói inteira porque não vive só na superfície das coisas.”
Marla de Queiroz
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022
terça-feira, 22 de fevereiro de 2022
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022
Caros amigos, com os anos, a gente vai ficando, paulatinamente, mais arrependido por tudo aquilo que não fizemos ou terminamos. Um livro infindo sobre a mesa, um varal pendurado de palavras não pronunciadas e um grito algemado na garganta. De tudo, fui sabendo restar-me, então, alguns sonhos a minha espera; não fosse esse tresloucado ato de querer acordar sempre antes da hora!
Teófilo Júnior
(...) Um dos maiores criminalistas que já passaram pelo foro de São Paulo, hoje falecido, costumava dizer que o direito penal oferece apenas duas opções a um advogado. Na primeira, ele se obriga a só aceitar a defesa de um cliente se tiver honestamente convencido de sua inocência. Na segunda, torna-se coautor de crimes. O resto, resumia ele, é apenas filosofia hipócrita para justificar o recebimento de honorários. (...)
(GUZZO, J. R. Marcha da insensatez. In: Veja. São Paulo: Abril, 4/7/2012, p. 68.)
domingo, 20 de fevereiro de 2022
sábado, 19 de fevereiro de 2022
Oswaldo Cruz e outros cientistas chegando a Manguinhos.
Profissionais em uma charrete durante a construção do Castelo, entre 1908 e 1909. Da esq. para a dir.: Oswaldo Cruz, Gustav Giemsa e Stanislas Von Prowazek. Os demais não possuem identificação, mas são todos professores da Escola de Medicina Tropical de Hamburgo.
Foto: Acervo COC.
Fonte: Retirado da página: SUBÚRBIO CARIOCA ANTIGO.
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022
“Eu jamais chegaria aonde cheguei se só andasse em linha reta. Tive que voltar atrás, andar em círculos, perder dias, perder o rumo, perder a paciência e me exaurir em tentativas aparentemente inúteis pra encontrar um quase endereço, uma provável ponte: a entrada do encontro. Acertei o caminho não porque segui as setas, mas porque desrespeitei todas as placas de aviso!...”
Marla de Queirós
Há dois lugares que faço planos para conhecê-los: Hungria e Polônia.
"Nas margens do rio Danúbio, na cidade de Budapeste, na Hungria, encontram-se 60 pares de sapatos de época. Eles foram colocados à beira da água, espalhados e abandonados, como se seus donos tivessem acabado de deixá-los lá. Se olhar mais de perto, se vê que estão enferrujados, que foram feitos de ferro e cravados no concreto.
Trata-se de um memorial em homenagem aos judeus húngaros que, no inverno de 1944-1945, foram fuzilados no local por membros do Partido Cruz Flechada, aliado da Alemanha Nazista".
Os húngaros, antes de serem fuzilados, eram obrigados a tirar os calçados, e em seguida, tinham os corpos lançados no Danúbio.
"O monumento, instalado em 2005, foi idealizado pelo diretor de cinema Can Togay, e criado junto com o escultor Gyula Pauer.
Descrição da imagem: trata-se de uma fotografia colorida da instalação artística. Ao fundo, o rio Danúbio. Em primeiro plano, os sapatos, que parecem abandonados à beira do rio e, no entanto, são de ferro e compõem a obra."
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022
Friedrich Nietzsche
"Os leitores extraem dos livros, consoante o seu caráter, a exemplo da abelha ou da aranha que, do suco das flores retiram, uma o mel, a outra o seu veneno".
"A felicidade precisa estar onde nós estamos,
não importa quantos sonhos ainda
temos para passar a limpo com as nossas ações.
Não importa o tanto de realizações
que ainda podemos concretizar.
Não importa quantas pendências nos aguardam.
Ou ela está onde nós estamos ou não está em lugar nenhum.”
Ana Jácomo
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