domingo, 22 de novembro de 2020

"Conclave": a eleição de um Papa


Saiu recentemente pelo selo Alfaguara (da Companhia das Letras) um romance que traduzi há algum tempo e que agora estou folheando para recordar algumas passagens.

Conclave (2016) de Robert Harris conta os bastidores de uma história que sempre tive alguma curiosidade de conhecer: a eleição de um Papa pelo Colégio dos Cardeais, em Roma. Para quem quiser saber em detalhe como são os rituais, os procedimentos, os regulamentos, os critérios, me parece uma boa introdução ao assunto.

Harris é um autor de vários best-sellers, dos quais traduzi também há pouco tempo Munique, onde ele conta o complicado processo da negociação e assinatura do Tratado de Munique em 1938, entre a Inglaterra e a Alemanha. Um tratado que ainda hoje dá muito o que falar, porque adiou por um ano o começo da II Guerra Mundial. Para uns, deu tempo a que Hitler se fortalecesse, e revelou fraqueza por parte do Primeiro Ministro inglês, Neville Chamberlain. Para outros (o livro mostra isso, não sei até que ponto é rigorosamente fiel aos fatos), Chamberlain conseguiu ganhar tempo e preparar a Inglaterra para a guerra, que era mesmo inevitável àquela altura.

Harris é um pesquisador cuidadoso, e em Conclave ele produz ao mesmo tempo um romance histórico, um romance de mistério e um thriller de suspense.

Romance histórico porque ao fim e ao cabo está retratando um processo de transição do poder numa das instituições mais antigas e mais politizadas do mundo, a Igreja Católica Romana. Como diria com ironia o pessoal de Campina Grande, “ali dentro só tem menino inocente”. É uma alcatéia de políticos lupinos que, independentemente da verdade e do ardor de sua fé mística, são capazes de...  Bem, leiam o livro.

Um romance de mistério porque há umas três ou quatro situações inexplicáveis que o protagonista, o Cardeal Lomeli, precisa entender por completo, o que lhe exige um certo trabalho detetivesco, que ele cumpre sem a tranquilidade filosófica e sem o faro dedutivo do Padre Brown de Chesterton, mas com uma coragem moral admirável.

Um thriller de suspense porque no transcorrer das votações, com cardeais se tornando sucessivamente favoritos ao Papado, vão surgindo inevitavelmente os problemas, as denúncias, as suspeitas, os confrontos, e tudo que envolve a revelação brusca de fatos que alteram por completo o equilíbrio das forças em jogo.

Mesmo quando as verdades que desvela são (para ele) estarrecedoras, Lomeli, que é o decano do Colégio dos Cardeais, a quem cabe organizar e conduzir a eleição do novo Papa, não deixa de lembrar:
 

Claro que uma cópia chegaria à imprensa mais cedo ou mais tarde. Isso acontecia com tudo. O próprio Cristo não havia profetizado, de acordo com o Evangelho de Lucas, que “nada há de oculto que não se torne manifesto, e nada em segredo que não seja conhecido e venha à luz do dia”?  (p. 207)

O romance conduz a um final surpreendente, do qual não darei qualquer spoiler aqui, porém mais do que uma surpresa dramática o que ele tem de eficaz é a reconstituição de um ambiente descrito com conhecimento de causa, porque não são poucos os detalhes canônicos e administrativos que é preciso levar em conta.

A experiência de traduzir um livro assim também se torna interessante por outro aspecto. Quando a gente traduz um livro de ficção científica, que transcorre em outro planeta, etc., depende inteiramente de duas coisas: a capacidade de descrição do autor, e a capacidade de visualização do leitor/tradutor. É um ambiente que não existe, precisa ser imaginado, e a experiência nos ensina que há escritores excelentes para conceber enredos extraordinários mas com poucas luzes para reproduzir a imagem visual de um ambiente, seja um deserto alienígena, uma cidade futurista ou o interior de uma nave.

Hoje em dia, no entanto, é possível pesquisar a fundo quando se trata de um ambiente real. Conclave decorre inteiramente nos domínios da Cidade do Vaticano, principalmente na Basílica de São Pedro, onde acontecem as votações, e na Casa Santa Marta, onde os cardeais ficam confinados, incomunicáveis com o mundo exterior, dormindo e fazendo refeições (e politicando, claro) até que a eleição esteja consumada.

É um conforto, para um tradutor (e para um autor também, decerto) poder com meia dúzia de cliques ter acesso a imagens reais do lugar onde a ação transcorre e desse modo ser capaz de visualizar posições relativas, distâncias, luminosidade, “clima” reinante naquele ambiente físico. Em se tratando de um romance realista, como é o caso, a sensação de estar presente no local é essencial para que as escolhas de vocabulário, de dicção, de ritmo, sejam escolhas condizentes com o universo descrito.

Abaixo, algumas imagens da Casa Santa Marta, dos aposentos dos cardeais e da sala de refeições.

 







Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo

Nenhum comentário: