"Vivemos num sistema de mentiras organizadas, entrelaçadas umas nas outras. E o milagre é que, apesar de tudo, consigamos construir as nossas pequenas verdades, com as quais vivemos, e das quais vivemos.“
José Saramago
"Estamos a 13.7 bilhões de anos-luzda borda do Universo observável.É uma boa estimativa, com margens de erro bem definidas.Os cientistas dizem que é verdade, masreconhecem que esse número pode ser melhorado.E com esta informação disponível, eu afirmoque sempre estarei com você”.
“A infância é ver o mundo como algo que não está acabado. Aquele adulto que não se surpreende com nada, sinto dizer, mas está morto”.
Mia Couto
Hoje os teus olhos perderam-se pelas ameaças da noite
E sei que só eu espero ainda o milagre
De um gesto perfeito (outros dirão perdido)
Que traga de volta à minha pele as marcas do suor
Com que falavas de mim como de um país
A que irias sempre regressar
- mas isso era no tempo em que
Ainda guardavas na algibeira as palavras da infância
Com que entraras um dia no meu corpo e na minha vida
E tudo tinha o destino tranquilo
De uma criança a atirar pedras à lua
Escultura de ©Philippe Faraut
Um dos heróis da Suíça, Guilherme Tell teria disparado uma flechada certeira em uma maçã, colocada na cabeça do seu filho, que estava amarrado a uma árvore, em um dia como este, no ano de 1307. Caso errasse a flechada, Guilherme Tell seria morto. Esta, pelo menos, é a versão contada por Aegidius Tschudi, um historiador católico conservador. Guilherme Tell e seu filho foram presos pelo tirano Hermann Gessler, pois eles haviam desrespeitado sua autoridade.
Gessler, para testar a lealdade do povo, tinha ordenado que fosse pendurado um chapéu com as cores da Áustria em um poste numa praça de Altdorf. Todos que passassem por ali deveriam que fazer uma saudação respeitosa ao chapéu, que era vigiado por soldados. Guilherme Tell e seu filho não fizeram a saudação e, por isso, foram presos. Tell era conhecido por ser um homem forte, bom escalador e exímio atirador. Por conta destes atributos, o tirano resolver testar as qualidades de Tell em seu próprio filho. Tell teria feito o tiro certeiro com sua besta (ou balestra), uma arma do tipo arco e flecha, com gatilho.
Depois que Tell acertou a maçã, em meio a aplausos em praça pública, Gessler notou que o herói havia preparado duas flechas. Perguntado pelo tirano porque havia feito isso, Tell hesitou e depois confessou que, caso matasse o seu filho, a segunda flecha seria para assassinar Gessler. Indignado, o tirano cumpriu sua promessa em manter Tell vivo, mas, para isso, ficaria preso para sempre. Tell foi acorrentado em um barco, com destino ao castelo de Küsnacht. Gessler e seus soldados também subiram na embarcação. Contudo, no meio da viagem, houve uma tempestade, e Tell foi solto para ajudar no salvamento. Tell conduziu o barco com segurança para terra firme e, no final, conseguiu escapar. Pouco depois, encontrou o tirano e o matou com aquela mesma flecha já reservada. Segundo a lenda, este evento marcou o início de uma revolta, que ocorreu em 1o. de janeiro de 1308 e que levou ao nascimento da Federação Suíça. De acordo com Tschudi, Tell teria morrido afogado em 1354, ao tentar salvar uma criança do afogamento, no rio Schächenbach, em Uri, um estado da Suíça.
Fonte: Hoje na história
“No aconchego da noite, o impossível ganha a suposição do visível. Nessa ilusão descansam os nossos fantasmas .”
Mia Couto “Cada homem é uma raça “
Conclave (2016)
de Robert Harris conta os bastidores de uma história que sempre tive alguma
curiosidade de conhecer: a eleição de um Papa pelo Colégio dos Cardeais, em
Roma. Para quem quiser saber em detalhe como são os rituais, os procedimentos,
os regulamentos, os critérios, me parece uma boa introdução ao assunto.
Harris é um autor de vários best-sellers, dos quais traduzi também há pouco tempo Munique,
onde ele conta o complicado processo
da negociação e assinatura do Tratado de Munique em 1938, entre a
Inglaterra e
a Alemanha. Um tratado que ainda hoje dá muito o que falar, porque adiou
por um
ano o começo da II Guerra Mundial. Para uns, deu tempo a que Hitler se
fortalecesse, e revelou fraqueza por parte do Primeiro Ministro inglês,
Neville
Chamberlain. Para outros (o livro mostra isso, não sei até que ponto é
rigorosamente fiel aos fatos), Chamberlain conseguiu ganhar tempo e
preparar a Inglaterra para a guerra, que era mesmo inevitável àquela
altura.
Harris é um pesquisador cuidadoso, e em Conclave ele produz ao mesmo tempo um
romance histórico, um romance de mistério e um thriller de suspense.
Romance histórico porque ao fim e ao cabo está retratando
um processo de transição do poder numa das instituições mais antigas e mais
politizadas do mundo, a Igreja Católica Romana. Como diria com ironia o pessoal
de Campina Grande, “ali dentro só tem menino inocente”. É uma alcatéia de
políticos lupinos que, independentemente da verdade e do ardor de sua fé
mística, são capazes de... Bem, leiam o
livro.
Um romance de mistério porque há umas três ou quatro situações
inexplicáveis que o protagonista, o Cardeal Lomeli, precisa entender por
completo, o que lhe exige um certo trabalho detetivesco, que ele cumpre sem a
tranquilidade filosófica e sem o faro dedutivo do Padre Brown de Chesterton,
mas com uma coragem moral admirável.
Um thriller de suspense porque no transcorrer das votações, com cardeais se tornando sucessivamente favoritos ao Papado, vão surgindo inevitavelmente os problemas, as denúncias, as suspeitas, os confrontos, e tudo que envolve a revelação brusca de fatos que alteram por completo o equilíbrio das forças em jogo.
Mesmo quando as verdades que desvela são (para ele)
estarrecedoras, Lomeli, que é o decano do Colégio dos Cardeais, a quem cabe
organizar e conduzir a eleição do novo Papa, não deixa de lembrar:
Claro que uma cópia chegaria à imprensa mais cedo ou mais tarde. Isso acontecia com tudo. O próprio Cristo não havia profetizado, de acordo com o Evangelho de Lucas, que “nada há de oculto que não se torne manifesto, e nada em segredo que não seja conhecido e venha à luz do dia”? (p. 207)
O romance conduz a um final surpreendente, do qual não darei qualquer spoiler aqui, porém mais do que uma surpresa dramática o que ele tem de eficaz é a reconstituição de um ambiente descrito com conhecimento de causa, porque não são poucos os detalhes canônicos e administrativos que é preciso levar em conta.
A experiência de traduzir um livro assim também se torna
interessante por outro aspecto. Quando a gente traduz um livro de ficção
científica, que transcorre em outro planeta, etc., depende inteiramente de duas
coisas: a capacidade de descrição do autor, e a capacidade de visualização do leitor/tradutor.
É um ambiente que não existe, precisa ser imaginado, e a experiência nos ensina
que há escritores excelentes para conceber enredos extraordinários mas com
poucas luzes para reproduzir a imagem visual de um ambiente, seja um deserto
alienígena, uma cidade futurista ou o interior de uma nave.
Hoje em dia, no entanto, é possível pesquisar a fundo
quando se trata de um ambiente real. Conclave
decorre inteiramente nos domínios da Cidade do Vaticano, principalmente na
Basílica de São Pedro, onde acontecem as votações, e na Casa Santa Marta, onde
os cardeais ficam confinados, incomunicáveis com o mundo exterior, dormindo e fazendo refeições (e
politicando, claro) até que a eleição esteja consumada.
É um conforto, para um tradutor (e para um autor também,
decerto) poder com meia dúzia de cliques ter acesso a imagens reais do lugar
onde a ação transcorre e desse modo ser capaz de visualizar posições relativas,
distâncias, luminosidade, “clima” reinante naquele ambiente físico. Em se
tratando de um romance realista, como é o caso, a sensação de estar presente no
local é essencial para que as escolhas de vocabulário, de dicção, de ritmo,
sejam escolhas condizentes com o universo descrito.
Abaixo, algumas imagens da Casa Santa Marta, dos
aposentos dos cardeais e da sala de refeições.
Nelson Rodrigues, no livro "A Menina Sem Estrela". (Cap. LXVI / Ed. Cia das Letras; 1.ª edição [1993]).
Obra: "Cabeça de Negro", 1906 - Arthur Timótheo.